Chego em casa depois de um longo dia de trabalho no hospital. Já completamos cinco meses de quarentena e fomos forçados a nos adaptar a uma nova rotina: home office, home school, máscaras, confinamento. Eu preciso manter minhas idas ao trabalho, pois os pacientes precisam de mim. E isso chega a ser até um alívio: um motivo justificado para ver o mundo além das janelas do apartamento.
Pego as chaves na bolsa e respiro fundo. Saboreando por mais alguns segundos a sensação falsa de paz e liberdade. Sei que é agora que o real trabalho do dia vai começar.
Abro a porta lentamente, como se me preparando para receber um grande impacto. A primeira coisa estranha que noto é o silêncio. Anormal, deslocado, improprio. Um mal pressentimento toma conta de mim e faz meus braços se arrepiarem.
Ao entrar na sala, noto o marido sentado à mesa, concentrado sem seus afazeres no computador, na mesma posição que estava quando saí. Ele discute algo enfaticamente com pessoas invisíveis, sem tirar os olhos da tela. Usa fones de ouvido e não percebeu a minha chegada.
Em seguida percorro os olhos sobre os inúmeros objetos espalhados sobre a mesma mesa: cadernos, apostilas, tablets, lápis coloridos. E me deparo com manchas vermelhas horrorosas ocupando todo o estofado da cadeira minha frente. Sangue! Houve um esquartejamento na minha casa!
Assustada, largo a bolsa no chão e me aproximo para examinar: não é sangue. É tinta! Senti um alívio que rapidamente foi desfeito ao olhar para as demais cadeiras mesa: todas estavam manchadas, com as mais diferentes cores e formas. Os encostos e assentos tons pastéis foram substituídos por desenhos abstratos e berrantes que escorriam até o chão. Encaro furiosa o marido, que continua compenetrado na sua discussão e ainda não notou a minha presença.
O silêncio me incomodava. Sigo cautelosamente pelo corredor do apartamento. Paro à porta do primeiro quarto. O do menino. O chão está atapetado por brinquedos de todas as formas e tamanhos. Mãozinhas coloridas carimbadas na parede e um tipo de gosma não identificável recobre o colchão da cama.
No banheiro do corredor, rolos de papel higiênico foram desfeitos e espalhados por todos os lados. A pia está entupida por uma rolha de papel molhado e a água da torneira aberta escorre para o chão. Fecho a torneira. O marido continua debatendo ao fundo.
O quarto da menina não apresentava condições melhores. Bonecas rabiscadas e sem roupas pelo chão, paredes decoradas com giz de cera e canetinhas, livros e sapatos espalhados. Mas o silêncio continuava. Senti minha nuca arrepiar e o coração disparar.
Entro no meu quarto. Toda a roupa de cama tinha sido arrancada e jazia numa pilha com os travesseiros em um canto. No colchão box, mais mãozinhas coloridas carimbadas. Meu armário de roupas estava escancarado e parecia ter vomitado tudo o que estava guardado lá. Blusas, calças, casacos, calcinhas, escorriam de suas entranhas.
De repente, ouvi risadinhas abafadas vindas do banheiro da suíte. Pé ante pé me aproximei e abri uma fresta pela porta, o suficiente para espiar o que estavam fazendo. Lá estavam eles. Os dois dentro da banheira, de roupa, um lavando o cabelo um do outro à seco, e claro, utilizando o meu shampoo de duzentos reais.
Foi quando me ocorreu: ninguém percebeu a minha chegada. Poderia regressar por todo o caminho que percorrera, silenciosamente e desaparecer. Talvez voltar para o hospital e me esconder no quarto dos médicos. Dirigir sem rumo até a gasolina acabar. Ou simplesmente caminhar a esmo e sumir.
A ideia foi muito tentadora e vagarosamente recuei tentando não fazer nenhum ruído. Mas, meu celular tocou. Imediatamente as duas cabecinhas se voltaram para mim:
– Mamãe!
Ao fundo ouvi o marido levantando-se da mesa e recolhendo suas parafernálias para se entocar no escritório:
– Graças a Deus você chegou! Agora vou conseguir trabalhar!
Atendi o aparelho delator. Era minha mãe:
– Oi filha. Tudo bem por aí?
Como seria possível definir o “tudo bem”? Suspirei profundamente:
– Tudo. É só mais um dia de quarentena. Nada além disso.
Acho que você deve estar sentindo mais saudades da escolinha do que as crianças.
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Hahahahaha tipico de quarentena mesmo!!!
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