A Rede

As histórias da biza sempre foram impressionantes. A maioria da família não lhe dava ouvidos. Afirmavam que não passavam de distorções da realidade causadas por sua mente senil que aos poucos desmoronava. Mas Pedro as adorava. Invenções ou não, eram fantásticas! O levava a universos completamente desconhecidos e assustadores.

– As pessoas se tocavam, biza? Encostavam na pele uma da outra?

– Claro! Era a coisa mais normal do mundo. Encontrar alguém e cumprimentá-lo com um abraço, um aperto de mão.

– Mesmo se não morassem na mesma casa?!

– Principalmente se não morassem na mesma casa.

Pedro ficava maravilhado com as narrativas desse passado remoto e intocável. Pessoas saiam de casa, se encontravam, conversavam cara a cara. Não utilizavam computadores e nem celulares para isso. Tudo acontecia fora das telas.

– E tem mais. – Biza sorria com sua gengiva lisa e sem dentes – Eram menores.

– Como assim menores?!

– Metade da sua largura. Todos aqui seriam considerados obesos, uma condição que causaria riscos para a saúde e deveria ser corrigida. Naquele tempo, o ideal era ser magro.

– Mas como alguém poderia ser magro? Eles passavam fome?

– Alguns. Mas a razão para a magreza era que as pessoas se movimentavam.

– Se movimentavam para quê?! – O menino parecia chocado, arregalando seus enormes olhos castanhos.

– Para tudo! Para trabalhar, para fazer compras, por lazer, para encontrar amigos. O mundo era movimento! Não essa coisa parada que você conhece. Agora todo mundo tem calo na bunda de tanto ficar sentado na frente de um computador!

Pedro não conseguia dormir. Ficava imaginando um mundo com ruas movimentadas, pessoas circulando, amigos conversando, se tocando! Barulho e ação. Ele não conhecia esse tipo de coisa. Seu mundo era estático. Iluminado pela luz fria de uma tela. Tudo acontecia lá dentro, na Rede. O mundo aqui fora era só uma sombra da realidade. Era lá dentro que a vida fluía. Era lá que estavam seus amigos, seus professores, toda a existência da humanidade.

Ele aprendeu na aula de História sobre a grande pandemia. Como todos ficaram com medo de morrer. Como se entocaram e desenvolveram alternativas para suprir suas necessidades. E foram entrando cada vez mais na Rede, até que a vida se transportou para lá.

O mundo ficou um lugar muito melhor desde então: a violência sessou, a natureza se recuperou. Os governos de todos os países custearam o acesso da população, pois os custos da vida na Rede eram muito menores para os bancos públicos. E lá dentro, todos eram iguais, afinal, você escolhia tudo o que queria ser.

Pedro lançou mão do seu smartfone e mandou uma mensagem para Lisa, sua melhor amiga: “Vamos nos encontrar?”

“Estou online na sala 6A-20.”

“Não. Vamos nos encontrar do lado de fora!”

Um plano mirabolante passava em sua mente. Eles se encontrariam amanhã, na hora da sesta, quando ninguém os veria sair de casa. Poderia ser atrás do antigo prédio vermelho, onde já funcionara uma escola real, mas agora restara apenas escombros, como o resto da cidade.

E para lá ele se dirigiu. Foi extremamente fácil sair de casa. Ninguém vigiava, porque nunca havia existido motivo para isso antes. Chegou cedo ao local de encontro. Suado e com o coração disparado, tanto pela ansiedade como pelo esforço físico.

Enquanto recuperava o fôlego ouviu passos de alguém se aproximando. Quase entrou em pânico, pois nunca estivera nessa situação antes. Ainda tentava se controlar quando o vulto de Lisa apareceu, com o andar inseguro e vacilante.

Era ela completamente diferente do seu avatar da Rede. Era alta, grande, com camadas de dobras de pele e gordura recobrindo o corpo inteiro. Imediatamente lembrou-se que ele também não tinha nada do guerreiro musculoso que o representava online.

Se aproximaram timidamente e se encararam por um bom tempo. Sorriram e instintivamente esticaram as mãos para tocarem os dedos.

– Vamos nos contaminar? – Lisa se alarmou, mas não recolheu a mão.

– Acho que não.

Não falaram muito. Apenas observaram os escombros e um ao outro.

O encontro durou pouco tempo. Tinham que estar em casa antes da sesta acabar. Mas combinaram de se ver novamente. Quem sabe chamar mais algum dos amigos da Rede? Poderiam explorar um pouco as ruas vazias. Ir a todos os lugares sem serem vistos. E depois… Poderiam fazer qualquer coisa!

 Pedro voltou para casa com uma euforia que jamais sentira. Era completamente diferente conhecer e tocar uma pessoa real. Sentir a pele de Lisa na ponta dos dedos fez seu corpo todo se arrepiar! E andar essa distância toda, quase 800 metros, era exaustivo, mas de alguma maneira estranha, revigorante!

Entrou em silencio e fechou a porta do quarto, como se nunca tivesse saído de lá. Tirou a camiseta que estava encharcada de suor. Enquanto procurava outra no armário bagunçado, ouviu o notebook se ligar sozinho em cima da mesa. Uma tela azul apareceu.

Intrigado, se aproximou do computador e começou a digitar e explorar a tela com o cursor do mouse. Não respondia. Irritado, continuou a digitar uma série de comandos na tentativa de destravar a máquina.

Um apito fez seu olhar se desviar do teclado para a tela. Os pixels pareciam estar maiores. Pulsavam e aumentavam. Pedro não conseguia desviar o olhar. Eles cresciam e se aproximavam. Ocupavam todo o seu campo de visão e o deixaram tonto. Pareciam penetrar no seu cérebro.

Pedro nem percebeu quando foi sugado para dentro da tela. Foi rápido e quase indolor. Um clarão e mais nada.

No visor uma mensagem piscou por 30 segundos: “Perigo para a Rede eliminado”. Depois a tela se apagou. Nunca mais seria ligada novamente.

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