Chegamos na cena do crime por volta das 22h. Eu e a inspetora da Polícia Federal que também era minha parceira e superiora imediata. Com seu grande talento analítico para dedução, Daniela impressionou todo o departamento com sua ascensão explosiva na carreira. Chamando atenção desde seus primeiros dias como agente, não demorou para que saltasse os degraus com habilidade até ocupar seu cargo na linha de frente das investigações nacionais mais importantes. O cargo que deveria ser meu. Claro, concordo que a menina tem um talento excepcional, mas mal saiu das fraldas. Não fazem nem cinco anos que ela passou no concurso para ingressar na PF, e eu, que dou o meu sangue há mais de trinta, agora tenho que responder a alguém com idade para ser minha filha.
O assassinato aconteceu dentro da casa da vítima, em um dos condomínios mais luxuosos e seguros de São Paulo. O corpo de Camile, de 16 anos, jazia no meio da sala de estar da enorme mansão de 400m². Caída de costas sobre uma poça de seu próprio sangue, deixava visível o orifício de entrada da bala, certeiro no seu coração. Não nos aproximamos muito, pois os peritos já trabalhavam intensamente para coletar todas as provas possíveis antes que se perdessem.
– O que temos aqui? – Daniela perguntava para o agente que nos recebeu.
– Camile Ferraz, filha única de Paulo e Luiza Ferraz, empresários magnatas da cidade. Foi encontrada morta pelos pais quando chegavam de um dia de trabalho. Não há sinais de arrombamento, nem luta. A vítima aparentemente deixou o assassino entrar.
Me aproximei de um dos peritos que passava luminol pela sala, na procura de manchas de sangue que poderiam ter sido limpas intencionalmente, e depois iluminava tudo com luz ultravioleta.
– Alguma coisa?
– Nada. Aparentemente o assassino entrou, deu um único tiro e foi embora.
– Impressões digitais? Marcas? Fibras?
– Ainda estamos recolhendo os dados.
– Vamos conversar com os pais da vítima. – Daniela me chamou.
As duas almas arrasadas encontravam-se na sala ao lado. Estavam sentados em um elegante sofá de camurça bordô. A mãe apenas gemia amparada pelo marido, já não tendo mais forças para chorar.
– Sr. e Sra. Ferraz, sou a inspetora Daniela, esse é meu parceiro: Oficial Mauricio. Somos os responsáveis pelas investigações. Vocês poderiam nos contar o que aconteceu?
– Nós chegamos em casa e a encontramos assim…
– Poderia ser mais específico, senhor Ferraz? – Perguntei impaciente. – Notaram algo de diferente na rua?
– Não. Mas a porta de casa não estava trancada. Nem prestei atenção na hora. Entramos cansados depois de um longo dia de reuniões com clientes. E quando acendemos as luzes… Minha filhinha!!! – Foi interrompido por soluços.
– Eu sinto muito por sua perda. – Daniela sentou-se ao lado do casal. – Vocês conseguem imaginar alguém que quisesse fazer mal à Camile? Algum inimigo, desavença, namorado? Ela teria mudado seu comportamento de alguma maneira recentemente?
Ambos negaram.
– Camile não tinha namorado e era muito querida pelos amigos… – contou a mãe antes de se debulhar em lágrimas novamente.
– E vocês? Possuem inimigos?
Paulo nos encarou com os olhos vermelhos e inchados:
– Somos ricos. Temos muitos inimigos.
Troquei olhares com minha parceira. Já teríamos por onde começar.
– Muito bem, Sr. Ferraz. Precisaremos da colaboração de vocês para pegarmos quem fez isso com Camile. Quero que façam uma lista de todas as pessoas que consideram “inimigos” e suas motivações. Entreguem para o Oficial Mauricio.
E virando-se para mim:
– Vou até a guarita do condomínio avaliar e apreender as filmagens de todos os carros que passaram por lá nas últimas 72h. Pegue essa lista de nomes e me encontre na delegacia em 2 horas. Até lá, já teremos os relatórios preliminares da perícia.
Cerca de três horas depois, estávamos com os relatórios em mãos:
– Nada! – Lamentava-se minha parceira. – Nenhuma impressão digital, nenhuma marca de sapato, fio de cabelo, fibra de qualquer espécie. Quem fez isso tomou precauções, sabia o que estava fazendo. E não roubou nada.
– Aparentemente o assassino tocou a campainha, entrou, atirou e foi embora. Alguma coisa nos vídeos da segurança?
– Houve muita movimentação no condomínio nas últimas 24h. Mas nada considerado suspeito. De qualquer maneira, todos os veículos que passaram pela entrada de visitantes estão sendo rastreados. Saiu o relatório do legista?
Abri uma pasta vermelha e tirei de lá um maço grosso de folhas impressas. Após folheá-las, achei o que procurava:
– Aqui está. Causa da morte: tiro único, com o orifício de entrada na face anterolateral esquerda do tórax, que atravessou o coração e se instalou na coluna. Um projétil calibre 38, levado para análise na balística. – Passei mais algumas folhas e tive uma surpresa. – Olhe isso: não houve trauma sexual, mas a garota teria tido relação a menos de 24h. Encontraram sêmen na região vaginal.
– A análise de DNA demora semanas.
– Não quando se trata de uma família tão rica e influente. – Sorri satisfeito.
Passamos os dias seguintes interrogando as pessoas da “lista de inimigos” que Paulo Ferraz fizera. Tratava-se de pessoas tão ricas quanto ele, que na verdade mostram-se concorrentes de mercado e não inimigos pessoais. E todos tinham álibis incontestáveis para o dia e hora do crime. Não saímos do lugar.
O relatório do setor de informática era mais animador: Camile, ou @camilove, se correspondia frequentemente com um tal de @guerreiro21, tanto pelo celular quanto pelo notebook. E as mensagens eram quentes! A busca pelo IP do correspondente secreto, revelou que ele frequentava diferentes Lan House da zona leste da cidade. Nunca uma máquina pessoal.
O celular de Daniela tocou. Sabia que a notícia era boa, pois seu sorriso se estendia de orelha a orelha.
– Temos um suspeito! – Ela desligou triunfante. – O resultado do DNA do esperma saiu e bateu com resultados do nosso banco de dados! Os agentes apreenderam o acusado no trabalho, uma lanchonete na Mooca, e já o estão conduzindo para nossa delegacia mais próxima!
– Vamos no meu carro. Aposto o que você quiser que é o tal de @guerreiro21!
Enquanto eu dirigia meu sedan preto com a sirene portátil de viaturas descaracterizadas ligada, o trânsito infernal de São Paulo se abria a nossa frente. Daniela olhava hipnotizada para o meu novo acessório que balançava pendurado no retrovisor dianteiro.
– É um filtro dos sonhos. – Informei.
– Eu sei. Conheço a lenda. Só não imaginava que você acreditava nesse tipo de coisa.
– Não acredito. Mas esse é exclusivo. – Podia sentir meu rosto corar. – Foi feito pela minha esposa. Segundo ela, é o único filtro de sonhos feito de missangas que encontrarei. Pois a ideia foi dela de fazê-lo assim. Na verdade, o trabalho manual a está ajudando no tratamento da depressão. Eu tento apoiar.
– Muito nobre da sua parte.
Daniela continuava analisando aquele artigo ridículo.
– Posso pedir para ela fazer um para você. Parece que gostou!
– Ficaria lisonjeada.
Chegamos na delegacia, que estava em polvorosa. O caso teve uma repercussão monstruosa na imprensa nacional, já que a vítima pertencia a uma família muito rica e influente. Repórteres, câmeras e curiosos atrapalhavam nossa passagem e dificultavam o nosso acesso à delegacia.
O rapaz que se encontrava na sala de interrogatórios ainda usava o uniforme de trabalho da lanchonete. Chamava-se Wagner da Silva, 21 anos, e tinha seu DNA em nossos registros devido a um assalto a mão-armada que cometeu há 3 anos.
– Sr. Wagner da Silva… – Comecei sedento, louco para voar no pescoço do meliante. – Você pode nos contar qual a sua relação com Camile Ferraz e o que fazia no dia 26 de setembro das 13 às 20 horas?
– Estava trabalhando. No mesmo lugar de onde me arrancaram agora! Podem perguntar para meu patrão.
Ele mantinha uma postura solta na cadeira, com os braços cruzados sobre o peito, e me lançava um olhar desafiador. Isso me dava nos nervos! Continuei:
– Conhecia Camile Ferraz?!
Ele não respondia, apenas me encarava.
– Muito bem. Eu posso dizer o que aconteceu. Você entrou no condomínio para entregar um lanche. Viu Camile e ficou com tesão assim que ela abriu a porta e deixou você entrar. A coagiu com um revólver calibre 38 para que não reagisse, o mesmo tipo de arma que você usou no assalto há 3 anos, a estuprou e, não satisfeito, a matou em seguida. Estou certo?
Seu olhar era de ódio. Sustentei o meu sem desviar. Wagner socou a mesa, impaciente.
– Eu jamais faria isso! Eu amava Camile!
Um silêncio constrangedor tomou conta do pequeno cômodo. Daniela, mais ponderada, tomou a frente:
– Como assim amava Camile? De onde a conhecia?
Acuado, o suspeito resolveu falar:
– Camile e eu estávamos juntos há 8 meses. Estávamos apaixonados!
– Camile Ferraz, filha do magnata Paulo Ferraz estava tendo um relacionamento com você?!
– Por que a surpresa? Por que sou pobre?! Um pé rapado?
– E como vocês se conheceram, Don Juan? – perguntei quase achando graça.
– Num pancadão em Heliópolis.
– Camile foi em um pancadão no meio da maior favela da cidade?! – aquele moleque só podia estar gozando com a nossa cara!
– Várias vezes. E não é a única patricinha a aparecer por lá. Ficariam surpresos de ver como toda essa riqueza deixa a nata da cidade entediada…
Daniela encarou o rapaz por um longo tempo.
– Alguém pode comprovar o relacionamento de vocês?
– Era segredo. Os pais delas jamais aceitariam. Nos vimos aquele dia na hora do almoço. Fizemos amor pela última vez… – Uma lagrima escorreu pela face do sem vergonha.
Perdi a paciência, e esmurrei a mesa, fazendo Wagner pular na cadeira:
– Muito conveniente! Um romance secreto, sem testemunhas seria um álibi perfeito para justificar um estupro! Mas, como Camile te entregaria para as autoridades e você viraria mulherzinha na prisão, revolveu matá-la, enquanto ela estava ajoelhada pedindo clemencia!
Eu estava quase agredindo aquele assassino, quando Daniela me conteve.
– Wagner, você era o @guerreiro21 que se correspondia com Camile.
Ele concordou. E jogou seu celular sobre a mesa.
– Podem olhar o meu celular. Não tenho internet nele. Usava as Lan Houses porque eram mais baratas. Mas eu liguei pra ela naquele dia. As 18:24. E alguém atendeu.
– Alguém atendeu?! – Daniela estava interessada. – Disse alguma coisa?
– Não disse nada. Mas eu podia ouvir sua respiração ofegante.
Depois do interrogatório, nos escondemos em uma cafeteria para conseguir pensar e comer alguma coisa.
– Não sei se conseguiremos detê-lo por muito tempo. As provas são circunstanciais…
– Como assim, parceira? É claro que foi o cara! Tinha porra dele fresca dentro da vítima!
– Pense bem, Mauricio: como um moleque da periferia conseguiria cometer o crime perfeito? Sem deixar nenhuma pista: impressão digital, cabelo, saliva… Nada!
– Ele deixou a porra!
– Temos de provar que não foi sexo consensual. Não havia trauma no exame de corpo de delito.
Me levantei irritado da mesa. Como a inspetora prodígio não conseguia enxergar o que estava bem debaixo do seu nariz?!
– Não entendo você, Daniela! Por que defende um marginal?! Faríamos um favor à sociedade. Um a menos nas ruas! Estarei na delegacia se precisar de mim.
Não esperei que respondesse, e sai do estabelecimento sem olhar para traz.
Dois dias depois, estava na minha mesa, debruçado sobre os depoimentos dos “inimigos” da família, quando Daniela me surpreendeu depositando um celular na minha frente.
– Você esqueceu na cafeteria.
– Obrigado. Achei que tivesse perdido!
– Vamos voltar na cena do crime. Tenho uma teoria.
A enorme mansão estava deserta. Ainda com o perímetro isolado pelas fitas da polícia. Alguns arranjos de flores murchas cobriam o capacho da entrada. Ao abrirmos a porta, o cheiro de sangue seco invadiu nossas narinas. Acendi a luz enquanto Daniela circulava pela sala de estar.
– Camile foi encontrada aqui. – Ela apontava para o tapete manchado. – Pelo orifício de entrada do tiro e pela posição dos respingos de sangue, o assassino atirou daqui.
Daniela se posicionou mais a direita e fingiu apontar uma arma com os dedos.
– A vítima estava ajoelhada, certo?
– Certo. – Concordei inconscientemente.
– O mais estranho, Mauricio, é que no relatório da perícia, em nenhum momento estava escrito que ela estava ajoelhada.
Dei de ombros, não entendendo aonde ela queria chegar.
– O seu filtro dos sonhos, feito de missangas. Eu sabia que já tinha visto em algum lugar. Voltei às gravações das câmeras de vigilância daquele dia e lá estava ele! Um sedan preto passou pela entrada dos moradores sem chamar a atenção. Tinha um enorme filtro dos sonhos balançando pendurado no retrovisor dianteiro. As missangas até reluziam na gravação. Mas não era a sua placa, claro!
– Mas de que merda você está falando, Daniela?!
– Calma, é só uma teoria. Me deixe terminar.
Daniela enfiou a mão do bolso e tirou um celular com a capa cor de rosa cheia de adesivos brilhantes. Colocou em cima de uma mesa ao meu lado. Era o telefone de Camile.
– Wagner disse que ligou para a namorada e alguém atendeu, e ficou apenas escutando. Isso quer dizer que o assassino pressionou a orelha contra a tela do aparelho.
– E daí?!
– Você é um policial muito experiente, Mauricio. Mas será que é atualizado? Desde 2013 as impressões auriculares são usadas para identificação humana, como as impressões digitais.
– Aonde você está querendo chegar, desgraçada?!
– É a sua orelha que foi pressionada na tela desse celular, Mauricio! Comparei com a impressão auricular do seu telefone!
A filha da puta realmente descobriu! Por um momento fiquei sem reação. Até que percebi que não teria outra opção. Saquei minha arma e apontei para o meio da testa daquela vagabunda. Ela também apontava a dela para a minha.
– Por que, Mauricio? Por que matou aquela menina?
– Era para ter sido o pai, mas foi ela quem atendeu a porta.
– Qual a sua motivação contra a família Ferraz?!
– Nenhuma! O meu problema é você!
– Eu?! O que tenho a ver com isso?!
Daniela nem sequer tremia a mira de sua pistola. Mantive-me firme também.
– Você é uma criança brincando de detetive! Entrou na PF ontem, e está ocupando uma posição que era para ser minha. Luto por ela há 30 anos! Queria provar para a corporação inteira que você não é tão boa quanto parece. Que não conseguiria desvendar um crime perfeito.
– Não existe crime perfeito, seu merda! Por que a família Ferraz?
Dei de ombros. Já não fazia mais diferença. Só um de nós dois sairia vivo daquela situação.
– Porque eles eram ricos. Muito ricos! A imprensa cairia em cima, a opinião publica te pressionaria. E o país inteiro assistiria o seu fracasso!
– Mas eu não fracassei.
Nesse instante vários agentes saíram das sombras de dentro da mansão. Todos apontavam suas armas para mim. Gritavam, me mandavam soltar a minha e me deitar no chão. Desgraçados insolentes! Fui eu quem ensinou tudo aquilo para eles!
Olhei nos olhos daquela puta. Eu ainda estava na sua mira. Abaixei minha pistola lentamente, sem desviar o meu olhar e disse:
– Você não é tão boa assim!
Em um único gesto rápido, enfiei o cano da arma na boca e puxei o gatilho. Pude sentir o gosto da pólvora e ver o desespero no rosto dela. Foi uma ótima visão antes de morrer.
Mais um conto em primeira pessoa muito bem escrito, com um final impactante que já está se tornando sua marca registrada.
Você sabe prender a atenção do leitor até o final.
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Impressionante!!!! Fiquei vidrada esperando pelo final!!!
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Bom ter vc de volta!❤
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Seus contos de suspense são hipnotizantes… estou amando…
Parabéns Ju.
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