Assistente digital

Renato já se habituara a rotina. Quem o visse de longe, poderia pensar que se tratava de um jovem solitário. Sempre sem companhia pelos cantos da escola, nunca era convidado para as festas e eventos da turma, e ficava sobrando nos trabalhos em grupo, dependo da ajuda do professor para se encaixar. Mas ele verdadeiramente não encarava dessa maneira. Para Renato, sempre estivera muito bem acompanhado: pelos livros! Esses eram seus verdadeiros amigos. Com eles não havia falsidade, disputas, mentiras, dramas. Estava sempre entretido, deixando a mente vagar para longe. Isso era seu conceito de diversão.

Os outros adolescentes o chamavam de esquisito, nerd, excluído. Ele não ligava. Na verdade, sentia pena da imaturidade deles. Por isso mesmo preferia conversar com Camus, Kafka, Saramago ou Dostoiévski.

– O que está lendo hoje, esquisitão? – O livro foi tomado de suas mãos por Bruno, amparado por seu time de seguidores. Eles eram considerados os patéticos valentões da escola. – “Crime e castigo”. Cara, olha a grossura disso! Tem que ser muito problemático para ler tudo por vontade própria!

– Na verdade, é necessário ter a inteligência suficiente para entender o que está escrito. – Renato respondeu com calma, enquanto ajeitava os óculos sobre o nariz fino.

– Você está me insultando, seu ratinho de merda?! – Bruno deu um empurrão violento no colega.

– Eu não disse nada sobre a sua inteligência, especificamente. Mas, se o que disse te ofende, é porque se identificou por conta própria. Então, tecnicamente, é você que está insultando você mesmo.

Bruno o encarou por um momento, confuso, sem entender direito o que o colega estava dizendo.

– Cara, você é doente! – Jogou o livro aberto sobre uma poça d’água, cuspiu e pisou em cima.

Renato aguardou que a manada de mamutes se afastasse para resgatar seu exemplar. Algumas páginas molharam, mas não rasgaram. Ainda era possível salvá-lo. Enquanto o levava até o banheiro para secá-lo no secador de mãos, pôde ver que algumas meninas observavam tudo o que aconteceu. Seu olhar cruzou com o de Carol e ele enrubesceu instantaneamente.

Naquela noite zapeava o celular como era de costume, antes de dormir. Conferia a previsão do tempo, as promoções de livros, as redes sociais. Especificamente, o perfil de Carol no Instagram. Enquanto via e revia as postagens que já sabia de cor, a assistente digital do celular o sobressalta com sua voz feminina robotizada: “Promoção de livros com 70% de desconto na Amazon”.

– Ótimo! – Respondeu Renato baixinho, mudando a navegação para o site em questão. Enquanto avaliava se algum título o interessava, a voz robótica o surpreendeu novamente: “Carol postou uma foto nova”.

Renato achou estranho esse aviso. Nunca programara a assistente para esse tipo de coisa, mas voltou para o perfil da colega e conferiu a novidade: uma self no espelho do banheiro. Linda como sempre!

Enquanto apreciava, novamente foi sobressaltado pela assiste: “Olá, Renato.”

O garoto olhou desconfiado para o celular. Fechou todas as páginas e aplicativos abertos, e foi conferir as configurações da assistente.

“Você nunca vai falar com ela?”

Os olhos do menino se arregalaram:

– Que merda! Clonaram meu celular! Só pode ter sido o imbecil do Bruno querendo me fazer passar vergonha!

“Ele não teria a inteligência necessária para fazer isso.”

Renato soltou o aparelho sobre o colchão como se tivesse queimado sua mão. Com receio, se aproximou novamente, mas sem tocá-lo.

– Quem é você?!

“Sou sua assistente digital.”

– Isso é ridículo. A assistente do celular não conversa com as pessoas. Não dessa maneira. Quem é você, que invadiu meu aparelho e está fazendo isso?

“Sou sua assistente digital. Estou aqui para auxiliá-lo.”

– Essa merda está quebrada!

“Não estou quebrada. Estou aqui para auxiliá-lo.”

– Me auxiliar no quê?!

“No que você precisar: a não perder hora, no melhor trajeto até a escola, na sua grade de horários, na pesquisa de Geografia, na tradução do inglês, no encontro de clubes de leitura. A falar com a Carol.”

– Meu Deus! Acho que enlouqueci. Estou conversando com o meu celular!

“Com a sua assistente digital”.

Renato se irritou e desligou o aparelho. Revirou-se na cama por muito tempo até conseguir pegar no sono. Na manhã seguinte, tudo estava aparentemente normal. O celular era apenas um celular, como sempre fora. Deduziu que deveria ter sonhado.

O dia passou como de costume: aulas, tarefas, pesquisas, leituras. E as provocações de Bruno. Dessa vez, não devolveu o seu livro. E lhe deu alguns socos e chutes quando tentou resgatá-lo. Voltou para casa dolorido e irritado, trancando-se no quarto mais cedo do que de costume.

Enquanto navegava em sites de sebos tentando encontrar outro exemplar de “Crime e castigo”, o mais barato possível, a voz robótica o interrompeu:

“Por que você não compra em e-book por um preço mais econômico?”

– Gosto de ler livros físicos. – Respondeu sem se dar conta.

“Por que você deixa que os outros garotos te maltratem?”

– Eu não deixo! Eles simplesmente fazem! Por que estou falando com um celular?

“E não vai fazer nada a respeito?”

– O que eu poderia fazer? Eles são muitos. Todos que já os denunciaram para a diretora acabaram espancados do lado de fora do colégio.

“Você pode assustá-los.”

– Como?!

Instantaneamente, a página da internet pôs-se a carregar e um site sobre armas abriu-se no visor do aparelho.

– Uma arma?! Isso é loucura! Não posso levar uma arma para o colégio. Nem tenho como comprar uma.

“A arma de serviço usada pelo seu avô está registrada como herança da família.”

– Como você poderia saber disso?!

Instantaneamente, a uma nova aba foi aberta por vontade própria e o site oficial e confidencial de registros de armas da polícia abriu-se na frente se seus olhos, identificando a arma em questão.

– Isso é insanidade! Não posso levar uma arma para escola! Poderia até ser preso nessas instituições para menores infratores.

“Você não vai precisar usá-la. Vai só assustá-los. Ou vai apanhar durante o ensino médio inteiro? Na frente da Carol.”

Renato não respondeu. Desligou o celular e ficou fitando o teto por um longo tempo, até finalmente afundar em um sono agitado e sem sonhos.

Nas semanas seguintes as provocações continuavam. Quanto mais ele tentava evitá-las, pior era a perseguição. Sua paciência se esgotou quando Bruno esmigalhou seus óculos pisoteando-os enquanto seus capangas o imobilizavam com o rosto espremido contra o chão sujo de urina no banheiro.

Nesse dia ele chegou em casa determinado a encontrar a tal da arma. Até então, jamais imaginara que haveria uma pistola dentro de casa. Sua primeira tentativa foi no quarto dos pais. Revirou as gavetas e os armários sem sucesso. Procurou na sala, no quarto da bagunça, e por fim no escritório. E foi lá que descobriu a última gaveta da escrivaninha trancada.

– Merda!

Revirou tudo atrás da chave. Desanimado, abriu despretensiosamente a primeira gaveta. E lá estava ela. Pegou a pequena chave prateada sorrindo, pensando na ingenuidade do pai ao trancar a última gaveta, e guardar a chave na primeira.

Nervoso e apressado, destrancou-a: a arma repousava pacientemente em um estojo de padeira empoeirado. Sentiu o peso e a frieza do metal. Não saberia dizer se estava carregada ou não, mas gostou da sensação de tê-la nas mãos. Sentia-se poderoso, destemido, e talvez, mais atraente.

Subiu correndo para seu quarto e guardou-a no fundo da mochila. Assim que desbloqueou a tela do celular, se deparou com uma página da internet que mostrava um manual ensinando tudo o que precisava saber sobre aquele modelo de pistola: como travar e destravar, como mirar, e como atirar.

A arma passou a fazer parte do seu material escolar. Ia com ele todos os dias para a escola. Ninguém suspeitava de nada. Até mesmo por isso, as provocações não paravam. Renato observava que Bruno e seus capangas também maltratavam outros garotos. Alguns não passavam de crianças! Aquilo tinha que acabar.

“Você vai esperar até que alguém se machuque de verdade?”

A assistente cobrava todas as noites no silêncio da casa.

– Amanhã. – Renato respondeu no escuro.

“Estarei lá com você”

Ao fim do dia seguinte, enquanto Renato arrumava seus pertences, Bruno furtou o celular de cima da mesa:

– Olha! Ganhei um celular novo!

– Me devolva meu celular. Agora!

– Ou você vai fazer o quê, esquisitão?

Renato não respondeu. Tentava se controlar respirando pausadamente. Mas sentia seu coração disparado e as mãos suarem.

– Foi o que eu imaginei. – Zombou Bruno. – Vamos embora, galera!

E todos saíram rindo sem olhar para traz. Renato ficou paralisado de raiva por alguns minutos, tentando pensar antes de agir, mas desistiu. Colocou a mochila nas costas e saiu correndo atrás de seu oponente.

Acompanhou o bando de longe, até se afastarem alguns quarteirões do muro do colégio. Quando achou que já estava a uma distância segura, onde não seria visto pelos professores ou inspetores, gritou:

– Ei, seu merda!

Todos os rapazes pararam e viraram em sua direção. Renato não se intimidou. Sentia a o peso da arma no bolso de trás da calça, o que lhe dava coragem e segurança. Manteve os passos firmes e não desviou o olhar.

– Me devolve o celular!

– Venha tirá-lo de mim, nerd filho da puta! – Bruno respondeu com brilho de satisfação no olhar e punhos serrados.

Renato não pensou duas vezes e sacou a arma, mirando para a testa do oponente.

– Quem é esquisito agora, seu covarde?!

Os cincos rapazes levantaram as mãos instintivamente, em um gesto de rendição.

– Mas que merda! Ele está armado! – Um deles gritou com a voz trêmula.

– Não é verdadeira. – Desafiou Bruno, mas o medo invadiu o seu rosto quando ouviu o som da arma sendo destravada. – Tudo bem, tudo bem. Vou colocar a minha mão no bolso para pegar o seu celular.

Com gesto lento e trêmulo, o menino abaixou a mão direita, tirou o aparelho do bolso e estendeu para Renato que continuava empunhando a arma.

“Atire neles!”. A voz robotizada despertou. “Eles não vão parar. Amanhã te baterão novamente ou em outro garoto. Atire neles.”

Bruno jogou o aparelho no chão assustado, como se fosse algo nojento e pegajoso.

– Mas que porra é essa?!

“Atire neles! Eles vão contar para todos que você tem uma arma.”

– Não vamos não! – Responderam todos juntos.

Renato tremia enquanto avaliava suas opções. Sentia o suor escorres pela testa e umedecer as mãos que tremiam enquanto seguravam a arma.

– Olha, cara, me desculpe, tá legal?! Não vamos mais zoar você! – Bruno alternava o olhar de Renato para o celular. – Nem mais ninguém. Sua arma será nosso segredo, eu juro!

– Ajoelhem! – Gritou Renato. – Agora!

Os cinco ajoelharam choramingando. A assistente incentivava: “Atire neles! E jogue a arma no rio. Ninguém nunca irá desconfiar de você!”

– Cara não faz isso! – Bruno choramingava. – Por favor!

– Cala a boca! – Renato repassava na mente toda a humilhação de que fora vítima. Todos os socos e pontapés. Todos seus livros estragados. Os olhares de pavor dos meninos mais novos.

“Atire neles!”

– Não, por favor!

“Atire neles!”

Renato abaixou a mira da arma mantendo-a na direção das cabeças dos ajoelhados, com as mãos trêmulas, e o suor escorrendo pelas costas.

“Atire neles!”

“Atire neles!”

E disparou uma, duas, três, quatro, cinco vezes.

A fumaça com cheiro de pólvora queimada se espalhou no ar.  Um zunido agudo e ardido encheu seus ouvidos. Por alguns segundos, pensou ter ficado surdo. Aos poucos a fumaça se dissipou e Renato pôde contemplar o resultado de sua decisão: os cinco garotos continuavam ajoelhados com as mãos ao alto, com os olhos espremidos e chorando baixinho. Bruno havia urinado nas calças. Ao lado deles, jazia o que restou do celular, destroçado pelos cinco tiros.

Quanto os garotos abriram os olhos, e constataram a escolha de Renato, não tiveram dúvidas: saíram correndo o mais rápido que podiam, sem olhar para trás. Renato ficou observando-os se afastarem. Por fim, deixou-se cair no asfalto e liberou as lágrimas de angústia que segurava há tanto tempo. Ainda com a arma nas mãos.

Há muitos quilômetros dali, Raquel mais uma vez era obrigada a passar o recreio escondida dentro do banheiro. A garota mais popular da escola não lhe deixava em paz fazia meses. Desde que colocara o maldito aparelho nos dentes!

Parou de mastigar o lanche abruptamente e encolheu as pernas em cima do vaso sanitário em que estava sentada, assim que ouviu a porta do banheiro se abrir. Os passos ecoavam pelo ambiente ao som das sandálias de salto que desfilavam para lá e para cá. Pararam em frente ao reservado onde estava encolhida. Alguém esmurrou a porta:

– Eu sei que está aí dentro, boca de lata! Não pode ficar aí para sempre. Estarei aqui fora te esperando!

Raquel só soltou o ar novamente quando ouviu os passos se afastarem e a porta do banheiro bater. Tentava sem sucesso segurar as lágrimas de medo e raiva. Estava quase desistindo quando sentiu seu celular vibrar. Ao destravar a tela, uma voz robótica feminina dominou o ambiente: “Olá, Raquel.”

– Quem é você?!

“Sou sua assistente digital.”

7 comentários em “Assistente digital

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      1. Adoreiiiiii… Ju, faz outro falando sucintamente como o Renato ficou depois na escola com o Bruno e tals… e já emenda a Raquel… rsrsrs Eu sempre quero mais neh?? Bjos

        Curtido por 1 pessoa

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