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A trajetória de Sophia

Sophia apareceu pronta no meu imaginário, em um momento em que escrever um livro nem me passava pela cabeça. Eu estava presa no trânsito, na Avenida Rebouças em São Paulo, desesperada para conseguir chegar no horário para atender os pacientes do consultório. Mas eu não tinha para onde ir: os carros não saiam do lugar. Então minha mente divagava, ela sim, livre.

Assim, a ideia surgiu: e se existisse uma garota que conseguisse enxergar cores nas pupilas das pessoas? Seu nome seria Sophia. Mas o que significariam essas cores? O que aconteceria com ela?

O trânsito andou antes que eu percebesse que criava uma personagem. A ideia foi guardada em algum lugar do meu inconsciente, e a vida seguiu. Porém, em todos os outros momentos aprisionada na mesma situação, ela voltava. Sophia ia ficando cada vez mais nítida: seu rosto, o cabelo, o porte físico. Aos poucos visualizava sua personalidade, sua moral, gostos, medos. Ela se transformava em uma pessoa quase real. Mas eu ainda não entendia o que eu deveria fazer com ela.

Um tempo depois, atravessei um período de vida delicado, e precisei me agarrar em algo para não afundar. Pensei: vou escrever um livro. E Sophia me invadiu imediatamente. Até então, eu era apenas uma leitora. Nunca tinha estudado sobre escrita criativa, ou técnicas de criação de romance. Mas eu precisava de uma fuga. E ninguém nunca iria ler. Certo?

Então, liguei o computador, olhei para a página em branco, e entendi que a Sophia era a minha protagonista. Ok. Mas qual era a sua história? Eu não tinha a mínima ideia. Resolvi que apenas a deixaria viver, fluir para as páginas, e ver o que acontecia.

Para a minha surpresa, a história surgiu. Sem nenhum planejamento prévio, sem ter a mínima noção sobre o enredo, sem programar os outros personagens, o conflito, o final… Meu primeiro romance nasceu em 4 meses, com mais de 500 páginas.

Isso aconteceu em 2014. Quando terminei, o que eu já sabia que seria o primeiro volume de uma trilogia, eu virei mãe. O foco da minha vida mudou completamente, e Sophia foi engavetada e esquecida.

Chegamos em 2020, no auge da pandemia, quando tudo era incerto e amedrontador. Eu precisava continuar trabalhando, cuidando dos pacientes, me expondo ao risco de me contaminar e levar o vírus para casa. O estresse era massacrante e não tínhamos a menor ideia de quanto tempo iria durar. Comecei a sentir a mesma necessidade de fuga, que experimentei em 2014. Então, me lembrei da Sophia.

Achei o computador velho, enterrado no baú embaixo da cama. Ele ainda ligava! Encontrei o original. Reli. Salvei na nuvem. Encarei a tela: eu tenho um livro inteiro escrito. E se alguém quisesse ler? Preciso fazer algo com ele.

Os cursos de escrita criativa me ajudaram a não enlouquecer nesse período tão crítico para toda a humanidade. Li livros técnicos, conheci professores e outros autores. Entendi que precisava revisar e cortar. Como doeu cortar passagens da minha história: ao todo, foram 150 páginas. Trabalhei por mais quatro meses e cheguei na melhor versão que conseguiria sozinha. Precisava agora de um olhar profissional.

Navegando por esse novo mundo literário, conheci o Sandro Bier do canal “Café do escritor”. Um editor dedicado à publicação de autores independentes e que oferecia o serviço de leitura crítica. Mandei o meu original para ele.

Fiquei surpresa com a qualidade da sua avaliação, e ele, com o que encontrou:

Decidimos então publicar o livro pelo selo editorial “Página Nova”, a prestadora de serviço que ele fundou para tornar alcançável o sonho da publicação para inúmeros escritores. Assim surgia a trilogia “As cores de Sophia”, com o seu primeiro volume, “Cores de Vida e de Morte”.

O livro ficou disponível na versão física e digital, e para a minha surpresa, foi um sucesso!

A história conquistou inúmeros leitores, ganhando resenhas, feedbacks, avaliações na Amazon, entrevistas televisivas e na mídia impressa. Isso era o sucesso que almejava: leitores! Era tudo o que eu desejava – pessoas que me dessem a oportunidade de ser lida, de deixar a Sophia viver. Não sonhava com flashes, autógrafos, fama, prêmios, Academia Brasileira de Letras. Eu só queira ser lida.

Descobri que para isso, além de escrever, era necessário divulgar. Tive que aprender sobre marketing e me debruçar sobre as redes sociais, trabalhando com os recursos que eu tinha.

O universo conspirou ao meu favor: fez minha história chegar até uma leitora especial, a Cris Veríssimo, que se apaixonou pelo meu universo. Como profissional do marketing, especialista em escritores, me ajudou a impulsionar a Sophia para além dos meus escassos conhecimentos na área.

E aí, veio a minha primeira premiação: “Cores de Vida e de Morte” foi eleito pelo júri e pelo público o melhor suspense de 2021 pelo Prêmio Book Brasil! Algo que nunca, jamais, em momento algum eu havia pensado. Nem em 2014, quando eu nem sabia escrever um romance, nem depois de tê-lo publicado.

Pouco tempo depois, o Rafael Silvaro, editor da Madrepérola, me convidou para publicar a trilogia inteira da Sophia, de maneira tradicional, pela sua editora. E isso, foi uma conquista muito além do que eu havia imaginado, pois quando decidi publicar a história, nem me passou pela cabeça fazer isso por uma publicação tradicional. Eu não queria esperar meses no silêncio para entender que alguma editora não tinha aprovado, ou pelo menos, lido o meu original. Sabia que existiam muitos autores mais conhecidos para que elas investissem seus recursos. Sempre fui muito realista quanto essa expectativa.

Contudo, o Rafael enxergou o meu trabalho no meio dessa multidão. Gostou, e acreditou nele.

Então, relançamos “Cores de Vida e de Morte” na Bienal de São Paulo, de 2022. O livro ficou impecável! E já temos uma linha editorial para compor a trilogia toda.

O volume dois, “Cores das Chamas e da Escuridão”, já está finalizado, e passa pelos processos finais de edição. Tem o lançamento previsto para o segundo semestre de 20022. A minha maior satisfação é ver a expectativa dos leitores, para a tão aguardada continuação da história. Fato que eu nunca imaginaria, quando aquela garota que enxergava cores ganhou a minha imaginação no meio do trânsito da Avenida Rebouças.

E para os mais curiosos: estou iniciando a escrita do volume três. Para finalizar com chave de ouro essa trilogia fantástica.

Se você ainda não conhece, fica aqui o convite para mergulhar na história fantástica de “As Cores de Sophia”. Tenho certeza de que nunca mais enxergará a realidade da mesma maneira.

É só clicar no link abaixo e deixar o meu universo se misturar ao seu! https://livro.editoramadreperola.com/as-cores-de-sophia

“Escrever um livro é aceitar o desafio de controlar o transbordar da mente, é transformar a represa em rio, cuja forma e sentido irão depender de quem beber da sua água.”

Jorge Luís Marujo

Post Destacado

Por que resolvi fazer um Blog?

Você já parou para pensar em quem é você? Não me refiro ao nome, profissão, ocupação, posição familiar ou na sociedade. Quem é você como individuo, o que espera desse mundo, quais são seus verdadeiros desejos, suas metas, suas realizações.

Acho impossível definir um ser humano de maneira simples. Cheguei à conclusão de que somos feitos de vários pedacinhos, que juntos formam a pessoa única que vemos quando nos olhamos no espelho. Cada pedacinho é um aspecto da nossa individualidade. Alguns são maiores, ocupam lugares de grande destaque, e outros são menores. As vezes tão pequenos, que acabam sendo esquecidos. Mas cada fragmento é importantíssimo e essencial para vivermos em harmonia conosco mesmos e com o mundo. Quando negligenciamos algum deles, fica um buraco. Muitas vezes imperceptível. Mas que com tempo pode crescer e se aprofundar. Como resultado acabamos perdidos, deprimidos, sem entender o que está faltando e porque estamos em desequilíbrio.

Raciocinando dessa maneira, há algum tempo venho fazendo esse exercício pessoal, e tentando identificar os meus pedacinhos, e o que está faltando para preencher as lacunas. Não é fácil, mas vou tentar resumir.

Sou mãe. Uma mãe apaixonada, realizada e muito feliz com suas crias. Faço de tudo e largaria tudo por eles se fosse preciso. Claro, tenho meus momentos de sentimentos ambíguos, e de desejos secretos por desaparecer. Afinal, sou uma mãe normal, como todas as outras. E esse, é o meu maior pedaço. Aquele que com certeza ocupa o maior espaço, descaradamente. Mas, eu não sou só mãe.

Sou médica, Hematologista. Adoro minha profissão, tenho muito orgulho dela. Sinto que estou no lugar certo. Minha especialidade, no entanto, não é fácil. Cuido de vários pacientes graves, presencio histórias trágicas, sou muitas vezes sugada pelas famílias inconformadas. Já tentei ficar longe da clínica e trabalhar apenas em laboratório, sem contato com essa vivência tão estressante. Aguentei por 3 anos. Foi impossível continuar sem cuidar de pacientes. Afinal, por mais difícil que seja, esse também é um pedaço de mim. Grande e imponente.

Mas, esses 2 aspectos não me resumem. Longe disso. Eu já era alguém antes de ser mãe e médica.

Eu sou bailarina. Dancei ballet clássico com grande afinco por 11 anos da minha vida, na adolescência. Tive que parar por escolhas que a vida nos apresenta, mas sempre fui completamente apaixonada pela dança. Então, mesmo não praticando no momento, esse também é um pedaço de mim.

Eu sou corredora. Me encontrei na corrida de rua. Frente a toda a logística que o cotidiano me impõe, esse é um esporte que se encaixa na minha rotina e que facilmente ganhou o meu coração. Adoro me superar, chegar mais longe e mais rápido. Levo a disciplina, persistência e resiliência que aprendi para todos os aspectos da minha vida. Esse é outro pedaço de mim.

Eu sou uma leitora. Amo livros de ficção, desde sempre. O hábito começou na infância e se perpetuou pela vida toda. Tenho certeza de que conquistei muitas coisas graças a ele. Sou viciada em mergulhar no universo dos livros e viver outras vidas. Adoro esse pedaço de mim.

Mas existe algo ainda mais primitivo. Um pedacinho que estava escondido lá no fundo, e que sempre me cutucou, querendo vir à superfície. Por muito tempo foi difícil identificá-lo. Mas aos poucos, com esse exercício de autoconhecimento percebi o que era.

Eu sou uma sonhadora. Desde a infância. Era aquela criança que sempre imaginava, inventava, e trazia todas as outras para dentro da minha história. Tinha amigos invisíveis e realmente acreditava que existiam. Convenci todas as minhas amigas de que realmente era possível ir para a Terra do Nunca e fiz o prédio inteiro acreditar que uma bruxa morava no oitavo andar. Ninguém tinha coragem de ir lá. (Por favor, amigos de infância, não me deixem mentir e podem comentar bastante).

E era esse pedaço que estava me incomodando. Estava inutilizado, mas vivo, debaixo de tantos outros. Até que ele conseguiu emergir. Mas como ser uma sonhadora depois de adulta? Eu já conheço a realidade e sei que o Peter Pan não vai aparecer no meu quarto durante a noite. Só achei uma resposta: escrevendo!

Criar histórias faz parte da minha identidade desde criança. Esse fragmento apareceu algumas vezes ao longo da minha existência, mas sem receber muita atenção. Surgiu em textos espalhados por aí, em cadernos, diários, redações, redes sociais. E agora que foi reencontrado, seria impossível fingir que não existe.

Então, criei esse blog. Com o intuito de viajar nas minhas ideias. Livremente e sem censuras. Convido vocês para me acompanharem e esquecerem um pouco a realidade. Permitam-se voar sem sair do lugar, e serem transportados a mundos novos, com infinitas possibilidades. Afinal, é isso que as histórias fazem.

Apresento assim, mais um pedacinho de mim. O pedacinho que demorei 38 anos para reconhecer: eu sou escritora.


“(…) a melhor parte (desse livro) é uma carta de autorização: você pode, você deve e, se tomar coragem para começar, você vai. Escrever é mágico, é a água da vida, como qualquer outra arte criativa. A água é de graça. Então beba.

Beba até ficar saciado.”

Stephen King, “Sobre a escrita”.

Post Destacado

Cena Spin-off de “Cores de Vida e de Morte”.

ATENÇÃO!

O texto a seguir contém spoilers. Se você ainda não leu o Volume 1 da trilogia “As cores de Sophia” não prossiga.

Leia o livro primeiro! 😉

Lucas

Caminho pelo estacionamento do Memorial da Saúde inspirando seu ar tão familiar: me sinto em casa. Depois de alguns meses fora, palestrando em vários congressos internacionais, não percebi como sentia falta daqui. Nem mesmo o aperto do elevador, sempre além da sua capacidade máxima, me deixa desconfortável. Percebo os olhares de residentes e outros colegas médicos que recaem sobre mim: luzes curiosas, admiradas.

Saio da sufocante caixa de metal no sétimo andar, e adentro pelas portas de vidro escuro da UTI. Assim que meus primeiros passos ecoam dentro do setor, ouço outros apressados por todos os lados.

— Ele chegou! Ele chegou! — É sussurrado de maneira urgente por vozes aflitas.

Entro no quarto dos médicos tentando disfarçar um sorriso: é impossível não me divertir com a apreensão e euforia que a minha presença causa, cada vez que entro aqui. Eu deveria estar acostumado com as cores atônitas que me perseguem desde os meus primeiros diagnósticos, realizados ainda na faculdade. Me dediquei à profissão, e com mérito, alcancei uma ascensão meteórica na carreira: abdiquei da minha vida pessoal e sempre me esforcei para mostrar minha capacidade e seriedade frente a tantos outros colegas, muito mais experientes do que eu.

Nunca deixei de me ver nas luzes amedrontadas dos residentes — estava entre eles há pouquíssimo tempo. Porém, preciso impor o respeito e lembrá-los que sou o chefe aqui, que exijo dedicação e empenho. A qualidade do atendimento da UTI é de minha responsabilidade e reflete a minha competência. Por isso, não admito corpo mole no meu setor.

Saio do quarto e me dirijo ao primeiro leito, para iniciarmos a ronda da manhã. Mesmo tendo ficado tanto tempo fora, o ritual de sempre se repete: o exército de jaleco branco me aguarda ao redor do doente: residentes, fisioterapeutas, enfermeiros. Um silencio denso pesa sobre eles, e escuto apenas suas respirações tensas, misturadas ao som mecânico do respirador.

— Muito bem, — consulto minhas anotações — quem está com o paciente do leito 701?

Julia, a residente do segundo ano de Terapia Intensiva, começa a me contar a respeito do caso, lendo o prontuário. Discretamente, levanto a pálpebra do doente intubado e constato que se trata de um choque séptico causado por uma pancreatite necro-hemorrágica. O quadro ainda é grave, sem perspectiva de melhora.

— E você pode me dizer por que esse paciente ainda não tem uma traqueostomia, se ele não tem previsão de extubação? — Pergunto sem encarar a aluna, tentando disfarçar a impaciência com um erro tão básico.

Ela apenas gagueja em resposta, demonstrando sua insegurança e falta de domínio da conduta necessária. Falhas que preciso corrigir.

— Bom, Dra. Júlia, acho que a primeira coisa que precisa fazer hoje é resolver isso com urgência. Se o paciente tiver alguma sequela traqueal causada pela intubação prolongada, será sua responsabilidade. Ou melhor, pela sua irresponsabilidade.

Levanto o olhar para encarar sua luz verde e me certificar de que a bronca surtiu o efeito necessário. Então, um movimento abrupto ao seu lado me chama atenção: alguém deixa uma pilha de prontuários cair e se espalhar no chão. Vejo uma outra residente, desconhecida, lutando para se equilibrar, enquanto cambaleia entre as pessoas até se apoiar no respirador. Com o movimento, acaba tracionando o tudo e o arrancando da garganta do paciente. Uma série de alarmes ensurdecedores são disparados. Antes que eu precise me mexer, a equipe inteira se prontifica a acudir o doente, realizando uma nova intubação, da maneira como eu os treinei.

Todos se movimentam com a urgência que a situação exige, menos ela: a desastrada que causou todo o reboliço na minha ronda. Permanece parada na minha frente, feito uma estátua, me encarando.

A encaro de volta, franzindo o cenho para demonstrar a minha reprovação. A visão da aluna me impacta com tanta força que não consigo formular uma frase. Sinto um arrepio eletrizante percorrer o meu corpo, a descarga de adrenalina disparar o meu coração e quase não consigo respirar quando reparo em seu belo rosto: arregalados, espantados, me fitam olhos cor de mel com pupilas negras. Dois pontos escuros, profundos e vazios — como os meus. Me sinto sugado pela força gravitacional desses dois buracos negros, e preciso de um esforço sobre-humano para controlar os efeitos da colisão que esse olhar teve sobre mim.

Em toda a minha vida, nunca encontrei pupilas como as minhas.

São os olhos mais lindos que já vi.

Lançamento presencial do volume II, “Cores das Chamas e da Escuridão”, em 10/12/22, às 19h, na Livraria da Vila do Shopping Iguatemi Campinas.

O volume I da trilogia “As cores de Sophia” – “Cores de Vida e de Morte”, eleito o melhor suspense de 2021 pelo Prêmio Book Brasil, e o volume II, “Cores das Chamas e da Escuridão” já estão disponíveis no formato físico e digital. É só clicar no link e deixar o meu universo se misturar ao seu. Tenho certeza de que nunca mais enxergará a realidade da esma maneira.

Cena Spin-off de “Cores de Vida e de Morte”

ATENÇÃO!

O texto a seguir contém spoilers. Se você ainda não leu o Volume 1 da trilogia “As cores de Sophia” não prossiga.

Leia o livro primeiro! 😉

Pedro

Não sei por que deixo a Sophia me convencer a fazer essas loucuras. Tem algo de diferente com ela. Desde a faculdade, me deixa atônito quando me olha nos olhos e parece estar lendo os segredos mais profundos da minha alma – aqueles que nem mesmo eu conheço. Ou quando descobre os diagnósticos mais absurdos, como se estivessem estampados na testa dos pacientes, com algum tipo de tinta que somente ela é capaz de enxergar. Já desisti de tentar entender as partidas de truco.

Depois, me vem com essa história de mortes erradas, assassinatos, tráfico de órgãos… Se minha mãe soubesse que eu a ajudei a invadir a sala administrativa do Memorial, acho que ela mesma me prenderia. E agora estamos aqui, andando no meio do mato, contornando um galpão no meio do nada, cheio de criminosos. Por que eu continuo fazendo essas loucuras por ela? Bom, é isso que os amigos fazem, não é? Ela é a minha melhor amiga. E tenho certeza de que ela faria por mim também.

Finalmente alcançamos a parte de traz do galpão retangular. Todos desviamos dos entulhos espalhados no escuro até estarmos espremidos contra a parede, tentando não fazer barulho, nem mesmo com a nossa respiração. Luiz espia a lateral do prédio e faz sinal para avançarmos. Seguimos em fila, rentes às sombras, tentando permanecer invisíveis. Não racionalizo o que estamos fazendo: para mim está claro que se trata de suicídio. Porém, jamais deixaria Sophia fazer isso sozinha.

Quando alcançamos a frente do prédio, Bia aponta para uma sombra na parede e parte naquela direção sem nos dar a chance de responder. Sophia a segue, e percebo que a sombra se trata de uma porta. Engulo seco, arrumo meus óculos que escorregam sobre meu nariz suado e tento controlar o pânico. Entro pela abertura também.

As duas estão protegidas atrás de um enorme contêiner, e há outros espalhados pelo interior do galpão. Me junto a elas e sou acompanhado por Luiz e Felipe. Assim que a penumbra nos engole, uma das ambulâncias sai pelo portão automático e se perde na estradinha de terra que nos trouxe até aqui.

Bia tira fotos sem parar. Vejo as caixas térmicas, com os possíveis órgão contrabandeados, sendo divididas entre as duas ambulâncias que restaram. Bia mostra o visor da máquina para Sophia e ambas olham na direção do contêiner do lado oposto do galpão. Tenho a impressão de ver um vulto se escondendo lá, mas meus óculos não me ajudam a ver com nitidez a essa distância.

— O que estamos fazendo aqui? — Pergunto ansioso para Luiz.

Ele encolhe ombros:

— Acho que estamos esperando os policiais…

Sophia e Bia começam uma discussão muda, com gestos enfáticos. Felipe pega a máquina fotográfica das mãos de Bia:

— Eu vou, sou mais rápido. Consigo atravessar sem ser visto.

Sophia protesta, mas Felipe sai correndo de nosso esconderijo, tentando chegar ao próximo contêiner. Mal tenho tempo de entender o que está acontecendo, quando ela também dispara na direção de Felipe, sem nenhuma explicação.

Ouço o tiro.

Sophia cai imediatamente no chão e uma poça de sangue desabrocha sob ela. Sem perceber, também estou correndo na sua direção.

A alcanço no momento em que sons estridentes de sirenes invadem o galpão e se misturam a gritos, mas os ignoro. Só vejo Sophia, pálida, com o rosto suado, se afogando em seu próprio sangue, que mina por um pequeno orifício negro em seu abdômen. Fico paralisado, escutando o choro desesperado de Bia atrás de mim.

— Está tudo bem, — minha melhor amiga balbucia tentando sorrir — não está doendo.

Vejo a vida deixar o seu semblante quando ela perde a consciência. O mundo parece desmoronar ao meu redor, e eu simplesmente não consigo me mexer. Estou apavorado!

— Eles não estão cinzas! Eles não estão cinzas! — Uma voz conhecida me desperta.

Dr. Lucas se materializa ao nosso lado, me empurrando para conseguir chegar até o corpo de Sophia. Ele e Felipe trocam olhares desesperados.

— O pulso está fraco. — Felipe constata.

Dr. Lucas procura a pulsação com os dedos, de maneira segura e profissional. Em seguida, começa as compressões cardíacas:

— Ela está em parada. Rápido, faça as respirações!

Enquanto meu professor massageia o coração estático, Felipe faz as respirações boca-a boca. Eu continuo sem me mexer. Tenho a sensação de que vou desmaiar sobre toda a volemia de Sophia, que tinge de rubro o chão de cimento esburacado.

— Pedro! Pedro! — Luiz me sacode aflito. — Está me ouvindo?

— Sim, acho que sim.

— Olhe para mim. — Ele desvia meu rosto para seu olhar assustado. — A Sophia precisa de você, tá legal? Se concentre!

Concordo freneticamente, sentindo as lagrimas escorrerem e afogarem a minha visão.

— Ótimo. Agora ache alguma coisa para estancar o sangramento. Consegue fazer isso?

— O pulso voltou! — Dr. Lucas anuncia.

Me afasto de onde estão e tenho apenas uma vaga noção da polícia que invade o galpão, das armas em punho, das algemas, das prisões. Caminho pensando no que poderia usar para interromper um sangramento tão grande, quando me vejo parado em frente as portas abertas de uma das ambulâncias. Entro tropeçando nas caixas térmicas largadas ali. Abro a primeira gaveta que alcanço e encontro várias ampolas de medicação. Na próxima, material para intubação. Cilindro de oxigênio, frascos de soro fisiológico…

— Graças à Deus!

Pego um pacote de compressas e volto correndo para onde Sophia vive por um fio.

— As ambulâncias! — Grito e jogo o pacote para Felipe. — São UTIs móveis de verdade! E estão equipadas!

Vejo um lampejo de esperança no semblante de todos. Felipe faz um curativo compressivo da melhor maneira que consegue e os três carregam o corpo flácido e seco para dentro da ambulância.

Bia faz menção de ir com eles, mas entro em seu caminho. Apoio minhas mãos em seus ombros, que soluçam.

— Bia, é melhor você ir com o Thomas.

— Mas, eu não posso deixá-la… É a Sophia!

— Ela está em boas mãos. O Dr. Lucas é um grande médico. Nos encontre no Memorial.

Thomas finalmente aparece no meio da confusão que acontece ao nosso redor. Abraça Bia com cuidado e apreensão. Ela desmorona ao seu toque.

— Cuide dela, Pedro, por favor…

— Posso ajudar em algo? – Thomas oferece.

Penso por um instante.

— Pode. Precisamos do agente que seja o melhor piloto aqui presente.

Quando volto para dentro da ambulância, Sophia está intubada, recebendo litros de soro por um acesso profundo em seu pescoço, realizado de maneira magistral por Luiz. Perece estável, mas a mancha vermelha escura no curativo em seu abdômen não para de crescer.

O motor da ambulância é acionado. Nos sobressaltamos.

— Se segurem. — Moraes avisa antes de pisar fundo no acelerador e sair do galpão cantando pneu.

Em instantes estamos sendo sacudidos pela estradinha de terra, rumo à rodovia dos Imigrantes. A sirene já grita alto, fazendo meus ouvidos zunirem.

Felipe continua comprimindo o ferimento da melhor maneira que consegue.

— Alô, aqui é o Dr. Lucas Martinelli. Preciso falar com o chefe da cirurgia de emergência que está de plantão. É uma situação extremamente urgente…

Dr. Lucas continua falando ao telefone, preparando nossa chegada no Memorial. Troco olhares preocupados com Felipe.

— Ela vai ficar bem? — Pergunto.

— Tem que ficar.

Quando a ambulância alcança a Avenida do Bandeirantes, já de volta à São Paulo, o monitor cardíaco distara seu alarme estridente e uma linha reta aparece na tela.

— Outra parada cardíaca! — Constato e imediatamente me debruço sobre o peito de Sophia, reiniciando as compressões.

— Uma ampola de adrenalina. — Dr. Lucas assume o comando, como um maestro.

Luiz realiza a medicação, enquanto eu não diminuo o ritmo da massagem cardíaca.

— Ela precisa de mais volume. Mais um litro de soro… — ouço a voz do professor.

Minhas mãos começam a formigar, sinto o suor escorrendo pelo meu rosto. Olho desesperado para a tela do monitor, mas a linha se mantém estática.

— Deixa que eu faço agora. — Felipe assume o meu lugar.

Mais um ciclo de ressuscitação se reinicia. Conto os minutos aflito, sabendo que a cada segundo que se passa, sem a oxigenação adequada, as chances de sequelas neurológicas são imensas. Até mesmo, uma morte cerebral.

— Mais adrenalina!

Já se passaram nove minutos.

— Vamos lá, Sophia! Não faça isso comigo. — Felipe também está suado, com os braços trêmulos.

— Eu faço agora. — Lucas se posiciona e assume as compressões. Seu semblante é como uma máscara: profissional e inexpressivo. Mas eu sei o que aconteceu entre ele e Sophia. Sei que também está apavorado.

Onze minutos.

Já me sinto derrotado, e minhas esperanças começam a dissolver-se. Tudo ao meu redor fica nublado, e me sento em um canto da ambulância, deixando a cabeça cair sobre minhas mãos. Ouço o estalar das costelas cedendo à massagem e a respiração de Lucas, ofegante pelo esforço. Tiro os óculos e deixo as lágrimas escorrerem – não adianta mais. É muito tempo. Não vai sobrar mais nada da Sophia aí dentro. Nada mais de olhares profundos, diagnósticos mirabolantes, sorrisos amigos, abraços apertados. Nada mais de minha melhor amiga.

— Ela voltou!

Me levanto sobressaltado, ao som monótono do monitor cardíaco. A ambulância já está subindo na rampa de acesso da entrada de emergência do pronto-socorro do Memorial.

— Quanto tempo foi de parada? — pergunto.

— Quinze minutos. — Luiz responde.

As portas traseiras do carro se abrem e nos deparamos com toda a equipe de cirurgia nos esperando. Descemos a maca com o corpo imóvel de Sophia, que é rapidamente levada para dentro do hospital. Dr. Lucas permanece ao seu lado, e se mistura no meio dos cirurgiões. Em câmera lenta, assistimos todos se movimentando com urgência e se perdendo dentro do Memorial, enquanto as portas da entrada de emergência se fecham na nossa frente.

Eu, Luiz e Felipe permanecemos imóveis ao lado da ambulância, sujos de sangue, suados, cansados e assustados. Ainda olhamos para as portas fechadas.

— Quinze minutos é muito tempo. — Digo. — Vocês sabem disso, não?

Lançamento presencial do volume II, “Cores das Chamas e da Escuridão”, em 10/12/22, às 19h, na Livraria da Vila do Shopping Iguatemi Campinas.

O Volume I da trilogia “As Cores de Sophia – Cores de Vida e de Morte”, eleito o melhor suspense de 2021 pelo Prêmio Book Brasil, e o volume II, “Cores das Chamas e da Escuridão” já estão disponíveis no formato físico e digital. É só clicar no link e deixar o meu universo se misturar ao seu. Tenho certeza de que nunca mais enxergará a realidade da mesma maneira.

Leia mais: Cena Spin-off de “Cores de Vida e de Morte”

Aconteceu em agosto/22

O universo de Sophia

Em agosto aconteceu a revelação da tão esperada e solicitada capa e da sinopse do Volume II da trilogia “As cores de Sophia”, intitulado “Cores das Chamas e da Escuridão”.

Você viu?

Sinopse:

Sophia percebe que sua vida jamais será a mesma: sua mente intrigante desperta interesses perigosos. Ela procura, então, manter-se protegida pelo anonimato.

Enquanto tenta dominar as novas e poderosas habilidades nascidas das chamas, Bia inicia uma investigação arriscada à procura das pontas soltas não encontradas pela polícia.

Por mais que queira evitar, Sophia é obrigada a encarar o desafio da nova realidade que se abre aos seus olhos. Para isso terá que enfrentar as suas escolhas, o passado, e a escuridão que cresce dentro dela mesma – onde tem mais alguém querendo entrar.

Finalizada.

Em agosto foi finalizada a revisão final do miolo do livro. Isso nos coloca na reta final para o lançamento!

Ansiosos?

Entrevista

Fui entrevistado pelo Mauro Plastina, em seu canal do YouTube: Tellers escola de escrita. Foi um bate papo descontraído e divertido sobre escrita e meu processo criativo.

Perdeu?

Não tem problema, é só clicar em https://www.youtube.com/watch?v=n1PTS0XEbHY e conferir!

Fica a dica para conhecerem o canal, recheado de dicas para quem gosta de escrever.

Divulgação honrosa

“Cores de Vida e de Morte” teve a honra de ser divulgada pelo professor e pesquisador de Literatura Fantástica, Alexander Meireles da Silva, em seu canal Fanfasticurso.

O Prof. Alexander é um grande entusiasta sobre o gênero literário, e tem um currículo de peso:

Professor Associado de Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Federal de Catalão (UFCat)

Doutor em Literatura Comparada (UFRJ)

Mestre em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ)

Especialista em Educação a Distância (SENAC)

Criador de conteúdo do canal FANTASTICURSOS

Por isso, ouvi-lo dizendo: “Juliana Lino vem se revelando um dos grandes nomes do fantástico nacional.” é muito mais do que um elogio e me faz acreditar no potencial das minhas histórias!

Se você também gosta do universo fantástico, em todas as suas vertentes, não deixe de conhecer o Fantasticursos: o melhor canal do gênero da web.

https://www.youtube.com/c/Fantasticursos

Dicas de escrita que rolaram no Instagram

Leitura finalizada

“Nossa parte da noite” – Mariana Enriquez

Um livro incrível, com uma trama sobrenatural hipnotizante, ao mesmo tempo que retrata a ditadura na Argentina. A autora tem um incrível domínio de uma narrativa complexa: a estrutura é fragmentada, o tempo não é linear e há mais de um narrador.

O fantástico é introduzido como mágica. Mariana nos dá migalhas da revelação do mistério, puxando o leitor para tramas cada vez mais profundas, das quais é impossível sair sem ter todas as respostas. Fantástico e realidade se misturam de maneira definitiva.

Super recomendo a leitura!

Em outubro

Acontecerá o tão esperado lançamento de “Cores das Chamas e da Escuridão”, o segundo volume da trilogia “As cores de Sophia”!

Teremos eventos virtual e presencial!

Fiquem ligados! Acompanhem as novidades em tempo real pelo Instagram, para não perderem nada!

Você me acompanha nessa viagem fantástica?

https://livro.editoramadreperola.com/as-cores-de-sophia

Até a próxima News!

Com carinho

Juliana Lino

Aconteceu em julho/22

Evento

Em julho/22 aconteceu o relançamento de “Cores de vida e de Morte”, o primeiro volume da trilogia “As cores de Sophia”, agora pela editora Madrepérola.

https://www.instagram.com/p/Cfw_PD8D91x/

Tivemos uma live muito descontraída com o editor Rafael Silvaro, onde sorteamos um exemplar autografado entre as perguntas mais criativas realizadas ao vivo. A vencedora sortuda foi a Cris Veríssimo.

Perdeu? É só clicar no link para conferir!

https://www.instagram.com/p/CfxOC9cDrR6/

Em 9/7/22 aconteceu o relançamento oficial, na Bienal de SP!

O evento estava lotado, mas recebi os leitores com muito carinho no stand da ABERST, onde autografei os exemplares, troquei ideias, resisti a dar spoilers sobre a continuação e tiramos muitas fotos.

Dica: Você conhece a ARBEST (Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror)?

Se você é leitor ou escritor do gênero, fica a dica! São muitos talentos renuídos lá.

https://aberst.com.br/

Dicas de escrita que rolaram no Instagram https://www.instagram.com/juliana._lino/

Vamos exercitar a nossa criatividade?

Dicas para escolher um bom título

Vantagens da leitura coletiva

Data comemorativa

25/7 – Dia nacional do escritor.

Frase mais curtida do mês:

Meme vencedor:

Tivemos um empate técnico:

Leitura finalizada:

“O nome da Rosa” – Umberto Eco.

Opnião: uma aula de história sobre a Idade Média. Mostra como a ganância e o abuso de poder são atemporais. Identifica a linha tênue entre a fé e o fanatismo e como os livros são vistos como objetos de poder – o conhecimento que liberta. E por isso mesmo são perigosos e devem ter o seu acesso limitado. Será que evoluímos realmente o quanto acreditamos?

Em agosto:

Anote na agenda!

Dia 15/8/22, às 20h, participarei de uma entrevista no https://www.youtube.com/c/TellersEscoladeEscrita

Não perca!

Expectativa dos bastidores:

– Finalização da capa e do projeto gráfico do segundo volume da trilogia: “Cores das Chamas e da Escuridão”.

– Início da escrita da primeira versão do original do terceiro volume.

Você me acompanha nessa viagem fantástica?

https://livro.editoramadreperola.com/as-cores-de-sophia

Até a próxima News!

Com carinho.

Juliana Lino.

Insônia

Tudo começou há um ano: 12/03/2018 – foi a última noite em que Marcos dormiu. A insônia chegou sorrateira, silenciosa. No início, nem mesmo se deu conta. Acordava cada vez mais cedo, sem jamais conseguir voltar a dormir. A cada noite, o tempo de sono encolhia, minguava. Até que por fim, simplesmente não dormia mais.

Os primeiros dias foram difíceis. Quando ainda conseguia dormir por algumas horas, os dias que se seguiam a essas noites interrompidas eram terríveis! Sentia-se exausto, sem capacidade para pensar ou se concentrar, irritado, com uma dor de cabeça arrebatadora. Pensou ter algumas alucinações e perdeu dois empregos por falta de produtividade.

Mas, quando o sono realmente desapareceu, ele simplesmente deixou de fazer falta. Os dias eram suaves como as noites. O cérebro pareceu voltar a funcionar de uma maneira impressionante, como um funcionário descansado depois das férias. Era capaz de raciocinar novamente, pensar, ter ideias. E, diferente de todas as outras pessoas, usufruía das vinte e quatro horas inteiras dos dias. Não desperdiçava mais nem um minuto dormindo. O que, claro, o impeliu na sua carreira, já que nunca mais teve problemas com prazos e produtividade.

Acompanhando sua nova condição inusitada, Marcos notou uma capacidade diferente. Algo acontecia dentro do seu cérebro insone quando tocava em alguém: ele os ouvia. Cada primeiro contato com outro ser humano era uma confissão. Bastava as peles se encostarem para as vozes invadirem sua mente revelando o segredo mais sombrio daquela pessoa.

Inicialmente não soube como agir. Não queira ser internado em um hospital psiquiátrico e simplesmente não era capaz de efetivamente intervir na vida de todos que cruzavam seu caminho e revelavam suas falcatruas, roubos, traições. Acabou aceitando que essa era apenas uma apresentação, como o nome de alguém. Não podia consertar o mundo. Mas sentia-se cada vez mais enojado e isolado de outros seres humanos.

Em uma tarde, foi apresentado para seu novo colega de trabalho no escritório de arquitetura:

– Marcos, esse é Alexandre. Ele vai integrar a sua equipe para o projeto do novo condomínio residencial em que estamos trabalhando. – Informou o chefe.

Os dois homens apertaram as mãos firmemente e um arrepio percorreu a espinha de Marcos: “Eu vou matar a minha esposa.” – foi sussurrado no fundo da sua mente. Não teve reação. O que poderia dizer? O que poderia fazer?

Limitou-se a fingir que nada havia ouvido, como de costume, e explicou o projeto em questão para o novo colega.

Nos dias que se sucederam, aquela confissão permanecia ressoando em seus ouvidos. E se fosse verdade? Caberia a ele fazer algo a respeito? Marcos passava as noites insones caminhando pelo seu apartamento, como um animal enjaulado, procurando uma solução. Amaldiçoou sua condição infinitas vezes, desejando nunca ter ouvido nada.

Decidiu, por fim, se aproximar de Alexandre. Aprofundar a relação de coleguismo, e quem sabe assim, conhecer sua esposa. De alguma maneira conseguir avisá-la.

– Vamos passar no happy hour do Bar do Juarez depois do expediente? – convidou certo dia – O pessoal de escritório costuma ir sempre lá.

– Acho uma ótima ideia, Marcos.  – Alexandre respondeu sorrindo. – Estou precisando de uma gelada!

A partir dessa primeira vez, as esticadas após o trabalho tornaram-se frequentes. Entre um chope e outro, com o gosto citrino e gelado na garganta e o odor convidativo dos aperitivos, a conversa corria mais fluída e descontraída. Alexandre parecia ser uma pessoa correta e divertida, não um assassino em potencial. A cada encontro as gargalhadas tornavam-se mais verdadeiras, e Marcos passou a desfrutar de sua amizade com sinceridade enterrando aquela terrível frase por baixo de outras memórias indesejadas.

– Nesse final de semana farei um churrasco lá em casa, Marcos. Para comemorar meu aniversário. Gostaria que você fosse.

Marcos aceitou o convite despretensiosamente. Já não pensava mais em seu plano inicial, mas talvez essa fosse uma boa oportunidade para conhecer a esposa de Alexandre e avaliar se havia algo de estranho entre os dois.

Alexandre morava em uma casa simples, mas bem cuidada em um bairro de classe média. A casa térrea dispunha de um quintal espaçoso, de onde uma churrasqueira de tijolos a mostra expelia fumaça das suas entranhas com cheiro de carne defumada. O odor conhecido, misturado ao som estalado de latinhas sendo abertas, fez o estômago de Marcos acordar.

Vozes, risadas e música espalhavam-se pelo ar. Saudoso, Marcos se deu conta de que, desde que deixou de dormir e passou a ouvir demais, nunca mais esteve em um evento social, onde pessoas normais se divertiam. E ele seria condenado a ouvir seus segredos monstruosos cada vez que fosse tocado.

Enquanto conversava com outros colegas do escritório, Alexandre chamou às suas costas:

– Marcos, quero te apresentar a minha esposa…

Marcos congelou quando viu a linda morena estendendo-lhe a mão direita. A moça tinha um sorriso escondido nos cantos dos lábios e o olhar surpreso. Ele aceitou o cumprimento, e no momento em que suas mãos se tocaram ouviu seu pior segredo: “Eu fiz um aborto quando tinha quinze anos”. Mas ele já sabia disso. O filho era seu.

Por um momento, ficaram congelados, encarando os rostos um do outro. Tão familiares e ao mesmo tempo tão mudados. Mais maduros, mais marcados. Mais vividos.

– Vocês se conheciam?! – Perguntou Alexandre surpreso.

– Cara, você não vai acreditar… – Marcos respondeu tentando parecer espontâneo. – Mas estudamos juntos na adolescência.

Alexandre respondeu com uma gargalhada:

– Esse mundo é muito pequeno mesmo!

Marcos e Graziela trocaram algumas tímidas palavras desconfortáveis: “Quanto tempo!”; “Por onde andou?”; “O que tem feito?”; “Você não mudou nada.”

Depois desse reencontro inusitado, um desconforto pungente espetava insistentemente a consciência de Marcos. E se Alexandre realmente fosse capaz de fazer algo tão terrível? O fato de conhecer Graziela, de já ter se apaixonado por ela, mesmo que há tanto tempo, tornava tudo mais real. Mais palpável. E mais aterrorizante.

Passou o resto da festa observando os dois: um casal de longa data normal – íntimos o suficiente para conversarem com os olhares; carinhosos, mas não fervorosos, nos toques; provocativos e cúmplices durante as conversas. Sentiu uma pequena ferroada de ciúmes. Repreendeu-se, sentindo-se ridículo em seguida.

Os dias que se seguiram depois da festa foram torturantes. Marcos ficou paranoico, obsessivo com a ideia terrível de que Graziela seria morta pelo próprio marido. As noites longas em vigília, antes tão produtivas e acolhedoras, se tornaram insuportáveis. Apenas aguardava os minutos se arrastarem, enquanto andava em círculos esperando a notícia chegar.

Certa tarde não se conteve. Fingiu um mal-estar qualquer no trabalho para sair mais cedo. Sabia a hora exata em que Alexandre iria para casa, teria tempo suficiente para conseguir conversar com Graziela. Tentar convencê-la de que corria perigo, sem soar como um completo lunático.

Graziela atendeu a porta no primeiro toque. Parecia despertada de algum trabalho que exigia muita concentração. Seus olhos negros sorriram ao ver Marcos, por detrás das lentes transparentes dos seus óculos de leitura.

– Estava esperando você. – Disse enquanto dava espaço para que entrasse.

Marcos adentrou na sala de estar aconchegante. Avaliava um quadro de fotos enquanto Graziela trancava a porta novamente.

– Graziela, eu preciso te contar uma coisa. Eu sei que vai parecer muito estranho, mas preciso que me escute até o final e…

Foi interrompido pelo dedo indicador dela pousado sobre os seus lábios, ordenando que fizesse silêncio.

– Eu achei que nunca mais veria você. – Ela sussurrou com o hálito quente e doce no seu ouvido.

Sem dizer mais nada, Graziela o beijou. As bocas se devoravam e tentavam sorver cada instante dos últimos vinte e cinco anos que os separaram. Mãos trêmulas percorriam os corpos ofegantes, enquanto os dois corações galopavam e se misturavam dentro do mesmo peito. Em um lapso de realidade estavam com as peles eriçadas e emaranhadas sobre o chão da sala. Dois corpos que se condensavam tentando ocupar o mesmo ponto no espaço.

O primeiro tiro soou distante, como em um sonho. Marcos só percebeu que algo estava errado quando o rijo corpo de Graziela pareceu desintegrar-se em cima do seu, enquanto um líquido quente envolvia ambos.

Desviou o olhar para cima a tempo de ver Alexandre parado ao seu lado, mirando o revólver em sua direção. O cheiro salgado de pólvora queimada invadia suas narinas. Não teve tempo para dizer nada antes de escutar o próximo disparo e visualizar a explosão que acontecia dentro do cano frio apontado para o seu olho.

– Não!!!

Marcos acordou suado, ofegante e desorientado. Demorou para reconhecer o seu quarto, a sua cama, os seus lençóis.

– Eu dormi?! Mas faz mais de um ano que não durmo!

Nesse momento o despertador do celular começou a tocar. Pegando o aparelho com as mãos trêmulas, verificou a hora: seis horas da manhã do dia 12/3/2018. Ficou confuso tentando entender o que aquilo significava.

– Foi tudo um sonho! Eu dormi! Durmo todos os dias como uma pessoa normal. Não tenho insônia. Graças a Deus!

Ficou mais alguns minutos verificando a data no aparelho para se certificar do que estava vendo. Nunca sentira tanto alívio na vida! Nunca fora tão grato por uma noite de sono.

Naquela manhã estava com especial bom humor. Chegou cedo ao escritório de arquitetura e contagiou toda a equipe. Sentia uma necessidade urgente de trabalhar, de se concentrar em alguma coisa para assim desfazer por completo todo aquele sonho maluco que ainda rodeava a sua mente.

Foi interrompido pela voz do chefe:

– Marcos, gostaria de te apresentar o novo membro da nossa equipe.

Ele largou o lápis sobre a prancheta, criando coragem para encarar o recém-chegado. O chefe continuou:

– Esse é o Alexandre. Ele vai integrar o projeto do condomínio de casas residenciais que você está gerenciando.

Sem opção, Marcos encarou seu novo colega de trabalho. Era ele. Alexandre tinha um sorriso receptivo e a mão direita estendida para um cumprimento. Mas Marcos não a aceitou. Ficou com medo do que descobriria se tocasse em sua pele.

Teve certeza de que não conseguiria dormir naquela noite.

A nova versão da escritora

Através de uma série de reflexões, realizamos juntos, aqui no blog, uma viagem pelo meu mundo particular da escrita. Começamos lá na minha infância, com “Sementinha de escritora” e passamos pelos anos que me firmaram como leitora, no “A essência do escritor”. Deparamo-nos com o momento delicado da minha vida que despertou novamente a escrita em mim em “O renascimento da escrita” e finalmente conhecemos o início do processo de evolução e conscientização da escrita em “O amadurecimento da escritora”.

Nesse último texto, contei como descobri a necessidade da revisão e reescrita do meu primeiro romance. Mostrei como, apesar de doloroso, o corte de cenas, capítulos e personagens, foi necessário para chegar à essência de história e deixá-la mais coesa. Ao final desse processo longo e penoso, entreguei minha obra para uma leitura crítica.

Mas eu não poderia ficar apenas aguardando o resultado dessa avaliação. Do que adiantaria ter o livro pronto em mãos, se não houvesse ninguém para lê-lo? E como as pessoas poderiam descobrir a sua existência e escolhê-lo entre o mar de opções? Eu precisava encontrar meu público leitor. Contar para ele que a minha escrita existia e que ele deveria experimentá-la. Que ela poderia ser interessante.

Para isso, precisei de coragem: me despir e tornar público alguns textos. Perder o medo de ser lida, criticada e, talvez, admirada. Mas, até então, minha produção se resumia a um romance. O que eu teria para mostrar? Para oferecer como degustação?

Após realizar mais algumas pesquisas e cursos, descobri que os contos poderiam ser uma boa opção para minha apresentação como escritora. Com isso, tive a ideia de criar esse blog, o Viajando nas ideias, para que ele fosse o cartão de visitas da minha produção literária. Aqui os leitores poderiam conhecer o meu estilo, os gêneros em que me sinto mais à vontade, e acompanhar minha evolução como escritora e o amadurecimento dos meus textos.

O maior desafio era: eu nunca escrevera contos antes. Eu não era habituada a ler contos. Sempre preferi os romances: narrativas mais longas, que nos dão a oportunidade de um envolvimento maior com a trama e os personagens, por mais tempo. Passei a vida toda lendo romances então, escrever um me pareceu extremamente natural.

Para encarar esse desafio, passei a ler coletâneas de contos de grandes autores (Edgar Allan Poe, Cortaza, Maupassand, Borges, Hemingway, Tchekhov, Machado de Assis) e mergulhei em um mundo, até então, completamente desconhecido.

Orientada por diversos cursos de qualidade, aprendi que a estrutura de um conto é completamente diferente de um romance. A narrativa curta deve ter menos personagens, poucos detalhamentos e descrições, se ater a uma situação. Precisa ser coeso, ter ritmo, e gerar o maior impacto possível. Através dos mínimos meios, gerar o máximo de efeito.

Estava habituada a desenvolver uma situação, para gerar o ambiente propício para história. Trabalhar nas camadas e desenvolvimento do arco de mudança do personagem. Estruturar o arco narrativo para evolução da trama. Cuidar da verossimilhança. E agora, eu teria que fazer algo completamente diferente.

Foi muito mais difícil escrever meu primeiro conto do que meu primeiro romance.

Depois de algumas tentativas fracassadas, finalmente cheguei a um texto que, aparentemente, era um conto decente. Por fim, criei coragem e o compartilhei em um grupo de escritores do qual participo. Para minha surpresa, foi muito bem aceito e elogiado. Foi o estímulo que precisava para finalmente publicar e colocar o blog no ar. Esse conto é “O médico e bêbado” que está entre as primeiras postagens daqui do blog e já foi publicado pela revista Paranhana Literário.

Aos poucos esse novo gênero de escrita nasceu em mim e encontrei uma nova versão de escritora adormecida, que até então, não fazia ideia da sua existência.

Sempre procurando melhorar e evoluir, continuei estudando, participando de cursos e oficinas e lendo. Lendo muito! Conforme o blog foi crescendo, ficando mais recheado, alguns seguidores foram aparecendo com comentários positivos e estimulantes e críticas construtivas.

Alguns de meus contos foram selecionados para participação de antologias. Recebi um convite para escrever um conto inédito, temático e especial, que me exigiu muita pesquisa, para compor uma antologia escrita apenas por mulheres: “Damas de Ferro”, da Projeto Literário Coletâneas (PLC), com lançamento em março/2021.

Com a prática acabei encontrando o meu estilo e descobrindo o que realmente gostaria de dizer. Qual seria a minha marca como autora. Assim, uma ideia para um novo projeto surgiu: uma coletânea de contos que sacudiria os leitores e os faria refletir. Sem abrir mão das boas histórias.

O universo de possibilidades da estrita estava apenas começando a se abrir na minha frente. E, como dentro de uma história nada é impossível, nem o céu seria o limite.

“No combate entre um texto apaixonante e seu leitoro romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute.”

Julio Cortázar

Falsas esperanças

Em uma tarde ensolarada, ela resolveu levar o filho e a bicicleta no parquinho. Era uma surpresa, mais uma tentativa. A ideia foi do marido. Afinal, o menino passava horas e horas hipnotizado na frente da televisão assistindo ao mesmo vídeo de campeonato de ciclismo. Nem piscava. Era como se o restante do mundo não existisse mais.

Escolheu uma bicicleta vermelha. A cor favorita da criança. Era a cor das roupas que ele permitia se vestir e da comida que aceitava comer sem que uma guerra fosse necessária para isso.

E lá estavam: o filho e a bicicleta. A mãe mostrou as outras crianças pedalando e se divertindo. Incentivou o menino a tentar. Mas ele se recusou a montar e permaneceu estático, apenas observando sua nova aquisição.

 Não precisa ter medo, meu amor. É só fazer assim, olha só! – Ela própria se sentou no objeto pequeno demais e tentou mostrar o que fazer.

Mas o garoto permanecia impassível. Olhando a mãe que pedalava desajeitadamente ao seu redor. Ela desceu, e ofereceu o brinquedo para ele. O menino aproximou-se e tocou o selim com as pontas dos dedos. O coração da mãe encheu-se de esperança.

– Eu ajudo você a subir.

Precipitou-se, pegando o garotinho no colo e colocando-o sentado na bicicleta. Mas ele se apavorou e começou a espernear e a gritar com toda a força de seus pulmões. A mãe percebeu o erro causado por sua empolgação, mas era tarde demais. Filho e bicicleta tombaram na grama.

O menino continuava gritando, enquanto puxava seus cabelos e se balançava no lugar. Decepcionada, a mãe abraçou-o, tentando acalmá-lo. Podia enxergar com a visão periférica os olhares das outras mães. Reprovadores, acusadores. Já deveria estar habituada a eles. Mas esses olhares sempre a matavam. Um pouco mais por vez.

Quando o filho se acalmou, voltou a fitar a bicicleta, agora caída no chão. A mãe, por um instante, odiou aquele trambolho vermelho. E odiou o marido pela falsa esperança que sua ideia tinha gerado. Estava tão cansada de ter falsas esperanças!

– Vamos para casa, então… – Ela estendeu a mão para o filho se levantar.

Mas ele ignorou o gesto. Permanecia olhando a bicicleta desfalecida na sua frente. Ela rendeu-se à exaustão que sempre aparecia após cada tentativa frustrada. Sentou-se ao lado da criança e deixou que contemplasse o brinquedo, o tempo que quisesse.

Ficaram os dois sentados, lado a lado, por um longo tempo. A mulher fingia ignorar os olhares e cochichos das outras mães. E das outras crianças. A armadura invisível sempre precisava sair de casa com ela.

De repente, o menino mexeu-se. Engatinhou para junto da bicicleta. Timidamente tocou em uma das rodas e deu impulso para que ela girasse. Repetiu o gesto quando estava quase parando, com mais força. A roda girava, girava e girava enquanto o sol refletia no aro de metal e iluminava de volta o seu rosto – o mesmo olhar hipnotizado que era despejado sobre o vídeo do campeonato de ciclismo.

Ele ficou fazendo aquilo por um tempo interminável. Até que, sorriu. Um sorriso puro, inocente, verdadeiro. Um sorriso que mostrava o espaço deixado pelo dentinho que acabara de perder. E a mãe, sorriu de volta. Sentindo o coração encher-se de esperança novamente. Mas dessa vez, não eram falsas. Em seis anos, nunca tinha visto o filho sorrir.

Assistente digital

Renato já se habituara a rotina. Quem o visse de longe, poderia pensar que se tratava de um jovem solitário. Sempre sem companhia pelos cantos da escola, nunca era convidado para as festas e eventos da turma, e ficava sobrando nos trabalhos em grupo, dependo da ajuda do professor para se encaixar. Mas ele verdadeiramente não encarava dessa maneira. Para Renato, sempre estivera muito bem acompanhado: pelos livros! Esses eram seus verdadeiros amigos. Com eles não havia falsidade, disputas, mentiras, dramas. Estava sempre entretido, deixando a mente vagar para longe. Isso era seu conceito de diversão.

Os outros adolescentes o chamavam de esquisito, nerd, excluído. Ele não ligava. Na verdade, sentia pena da imaturidade deles. Por isso mesmo preferia conversar com Camus, Kafka, Saramago ou Dostoiévski.

– O que está lendo hoje, esquisitão? – O livro foi tomado de suas mãos por Bruno, amparado por seu time de seguidores. Eles eram considerados os patéticos valentões da escola. – “Crime e castigo”. Cara, olha a grossura disso! Tem que ser muito problemático para ler tudo por vontade própria!

– Na verdade, é necessário ter a inteligência suficiente para entender o que está escrito. – Renato respondeu com calma, enquanto ajeitava os óculos sobre o nariz fino.

– Você está me insultando, seu ratinho de merda?! – Bruno deu um empurrão violento no colega.

– Eu não disse nada sobre a sua inteligência, especificamente. Mas, se o que disse te ofende, é porque se identificou por conta própria. Então, tecnicamente, é você que está insultando você mesmo.

Bruno o encarou por um momento, confuso, sem entender direito o que o colega estava dizendo.

– Cara, você é doente! – Jogou o livro aberto sobre uma poça d’água, cuspiu e pisou em cima.

Renato aguardou que a manada de mamutes se afastasse para resgatar seu exemplar. Algumas páginas molharam, mas não rasgaram. Ainda era possível salvá-lo. Enquanto o levava até o banheiro para secá-lo no secador de mãos, pôde ver que algumas meninas observavam tudo o que aconteceu. Seu olhar cruzou com o de Carol e ele enrubesceu instantaneamente.

Naquela noite zapeava o celular como era de costume, antes de dormir. Conferia a previsão do tempo, as promoções de livros, as redes sociais. Especificamente, o perfil de Carol no Instagram. Enquanto via e revia as postagens que já sabia de cor, a assistente digital do celular o sobressalta com sua voz feminina robotizada: “Promoção de livros com 70% de desconto na Amazon”.

– Ótimo! – Respondeu Renato baixinho, mudando a navegação para o site em questão. Enquanto avaliava se algum título o interessava, a voz robótica o surpreendeu novamente: “Carol postou uma foto nova”.

Renato achou estranho esse aviso. Nunca programara a assistente para esse tipo de coisa, mas voltou para o perfil da colega e conferiu a novidade: uma self no espelho do banheiro. Linda como sempre!

Enquanto apreciava, novamente foi sobressaltado pela assiste: “Olá, Renato.”

O garoto olhou desconfiado para o celular. Fechou todas as páginas e aplicativos abertos, e foi conferir as configurações da assistente.

“Você nunca vai falar com ela?”

Os olhos do menino se arregalaram:

– Que merda! Clonaram meu celular! Só pode ter sido o imbecil do Bruno querendo me fazer passar vergonha!

“Ele não teria a inteligência necessária para fazer isso.”

Renato soltou o aparelho sobre o colchão como se tivesse queimado sua mão. Com receio, se aproximou novamente, mas sem tocá-lo.

– Quem é você?!

“Sou sua assistente digital.”

– Isso é ridículo. A assistente do celular não conversa com as pessoas. Não dessa maneira. Quem é você, que invadiu meu aparelho e está fazendo isso?

“Sou sua assistente digital. Estou aqui para auxiliá-lo.”

– Essa merda está quebrada!

“Não estou quebrada. Estou aqui para auxiliá-lo.”

– Me auxiliar no quê?!

“No que você precisar: a não perder hora, no melhor trajeto até a escola, na sua grade de horários, na pesquisa de Geografia, na tradução do inglês, no encontro de clubes de leitura. A falar com a Carol.”

– Meu Deus! Acho que enlouqueci. Estou conversando com o meu celular!

“Com a sua assistente digital”.

Renato se irritou e desligou o aparelho. Revirou-se na cama por muito tempo até conseguir pegar no sono. Na manhã seguinte, tudo estava aparentemente normal. O celular era apenas um celular, como sempre fora. Deduziu que deveria ter sonhado.

O dia passou como de costume: aulas, tarefas, pesquisas, leituras. E as provocações de Bruno. Dessa vez, não devolveu o seu livro. E lhe deu alguns socos e chutes quando tentou resgatá-lo. Voltou para casa dolorido e irritado, trancando-se no quarto mais cedo do que de costume.

Enquanto navegava em sites de sebos tentando encontrar outro exemplar de “Crime e castigo”, o mais barato possível, a voz robótica o interrompeu:

“Por que você não compra em e-book por um preço mais econômico?”

– Gosto de ler livros físicos. – Respondeu sem se dar conta.

“Por que você deixa que os outros garotos te maltratem?”

– Eu não deixo! Eles simplesmente fazem! Por que estou falando com um celular?

“E não vai fazer nada a respeito?”

– O que eu poderia fazer? Eles são muitos. Todos que já os denunciaram para a diretora acabaram espancados do lado de fora do colégio.

“Você pode assustá-los.”

– Como?!

Instantaneamente, a página da internet pôs-se a carregar e um site sobre armas abriu-se no visor do aparelho.

– Uma arma?! Isso é loucura! Não posso levar uma arma para o colégio. Nem tenho como comprar uma.

“A arma de serviço usada pelo seu avô está registrada como herança da família.”

– Como você poderia saber disso?!

Instantaneamente, a uma nova aba foi aberta por vontade própria e o site oficial e confidencial de registros de armas da polícia abriu-se na frente se seus olhos, identificando a arma em questão.

– Isso é insanidade! Não posso levar uma arma para escola! Poderia até ser preso nessas instituições para menores infratores.

“Você não vai precisar usá-la. Vai só assustá-los. Ou vai apanhar durante o ensino médio inteiro? Na frente da Carol.”

Renato não respondeu. Desligou o celular e ficou fitando o teto por um longo tempo, até finalmente afundar em um sono agitado e sem sonhos.

Nas semanas seguintes as provocações continuavam. Quanto mais ele tentava evitá-las, pior era a perseguição. Sua paciência se esgotou quando Bruno esmigalhou seus óculos pisoteando-os enquanto seus capangas o imobilizavam com o rosto espremido contra o chão sujo de urina no banheiro.

Nesse dia ele chegou em casa determinado a encontrar a tal da arma. Até então, jamais imaginara que haveria uma pistola dentro de casa. Sua primeira tentativa foi no quarto dos pais. Revirou as gavetas e os armários sem sucesso. Procurou na sala, no quarto da bagunça, e por fim no escritório. E foi lá que descobriu a última gaveta da escrivaninha trancada.

– Merda!

Revirou tudo atrás da chave. Desanimado, abriu despretensiosamente a primeira gaveta. E lá estava ela. Pegou a pequena chave prateada sorrindo, pensando na ingenuidade do pai ao trancar a última gaveta, e guardar a chave na primeira.

Nervoso e apressado, destrancou-a: a arma repousava pacientemente em um estojo de padeira empoeirado. Sentiu o peso e a frieza do metal. Não saberia dizer se estava carregada ou não, mas gostou da sensação de tê-la nas mãos. Sentia-se poderoso, destemido, e talvez, mais atraente.

Subiu correndo para seu quarto e guardou-a no fundo da mochila. Assim que desbloqueou a tela do celular, se deparou com uma página da internet que mostrava um manual ensinando tudo o que precisava saber sobre aquele modelo de pistola: como travar e destravar, como mirar, e como atirar.

A arma passou a fazer parte do seu material escolar. Ia com ele todos os dias para a escola. Ninguém suspeitava de nada. Até mesmo por isso, as provocações não paravam. Renato observava que Bruno e seus capangas também maltratavam outros garotos. Alguns não passavam de crianças! Aquilo tinha que acabar.

“Você vai esperar até que alguém se machuque de verdade?”

A assistente cobrava todas as noites no silêncio da casa.

– Amanhã. – Renato respondeu no escuro.

“Estarei lá com você”

Ao fim do dia seguinte, enquanto Renato arrumava seus pertences, Bruno furtou o celular de cima da mesa:

– Olha! Ganhei um celular novo!

– Me devolva meu celular. Agora!

– Ou você vai fazer o quê, esquisitão?

Renato não respondeu. Tentava se controlar respirando pausadamente. Mas sentia seu coração disparado e as mãos suarem.

– Foi o que eu imaginei. – Zombou Bruno. – Vamos embora, galera!

E todos saíram rindo sem olhar para traz. Renato ficou paralisado de raiva por alguns minutos, tentando pensar antes de agir, mas desistiu. Colocou a mochila nas costas e saiu correndo atrás de seu oponente.

Acompanhou o bando de longe, até se afastarem alguns quarteirões do muro do colégio. Quando achou que já estava a uma distância segura, onde não seria visto pelos professores ou inspetores, gritou:

– Ei, seu merda!

Todos os rapazes pararam e viraram em sua direção. Renato não se intimidou. Sentia a o peso da arma no bolso de trás da calça, o que lhe dava coragem e segurança. Manteve os passos firmes e não desviou o olhar.

– Me devolve o celular!

– Venha tirá-lo de mim, nerd filho da puta! – Bruno respondeu com brilho de satisfação no olhar e punhos serrados.

Renato não pensou duas vezes e sacou a arma, mirando para a testa do oponente.

– Quem é esquisito agora, seu covarde?!

Os cincos rapazes levantaram as mãos instintivamente, em um gesto de rendição.

– Mas que merda! Ele está armado! – Um deles gritou com a voz trêmula.

– Não é verdadeira. – Desafiou Bruno, mas o medo invadiu o seu rosto quando ouviu o som da arma sendo destravada. – Tudo bem, tudo bem. Vou colocar a minha mão no bolso para pegar o seu celular.

Com gesto lento e trêmulo, o menino abaixou a mão direita, tirou o aparelho do bolso e estendeu para Renato que continuava empunhando a arma.

“Atire neles!”. A voz robotizada despertou. “Eles não vão parar. Amanhã te baterão novamente ou em outro garoto. Atire neles.”

Bruno jogou o aparelho no chão assustado, como se fosse algo nojento e pegajoso.

– Mas que porra é essa?!

“Atire neles! Eles vão contar para todos que você tem uma arma.”

– Não vamos não! – Responderam todos juntos.

Renato tremia enquanto avaliava suas opções. Sentia o suor escorres pela testa e umedecer as mãos que tremiam enquanto seguravam a arma.

– Olha, cara, me desculpe, tá legal?! Não vamos mais zoar você! – Bruno alternava o olhar de Renato para o celular. – Nem mais ninguém. Sua arma será nosso segredo, eu juro!

– Ajoelhem! – Gritou Renato. – Agora!

Os cinco ajoelharam choramingando. A assistente incentivava: “Atire neles! E jogue a arma no rio. Ninguém nunca irá desconfiar de você!”

– Cara não faz isso! – Bruno choramingava. – Por favor!

– Cala a boca! – Renato repassava na mente toda a humilhação de que fora vítima. Todos os socos e pontapés. Todos seus livros estragados. Os olhares de pavor dos meninos mais novos.

“Atire neles!”

– Não, por favor!

“Atire neles!”

Renato abaixou a mira da arma mantendo-a na direção das cabeças dos ajoelhados, com as mãos trêmulas, e o suor escorrendo pelas costas.

“Atire neles!”

“Atire neles!”

E disparou uma, duas, três, quatro, cinco vezes.

A fumaça com cheiro de pólvora queimada se espalhou no ar.  Um zunido agudo e ardido encheu seus ouvidos. Por alguns segundos, pensou ter ficado surdo. Aos poucos a fumaça se dissipou e Renato pôde contemplar o resultado de sua decisão: os cinco garotos continuavam ajoelhados com as mãos ao alto, com os olhos espremidos e chorando baixinho. Bruno havia urinado nas calças. Ao lado deles, jazia o que restou do celular, destroçado pelos cinco tiros.

Quanto os garotos abriram os olhos, e constataram a escolha de Renato, não tiveram dúvidas: saíram correndo o mais rápido que podiam, sem olhar para trás. Renato ficou observando-os se afastarem. Por fim, deixou-se cair no asfalto e liberou as lágrimas de angústia que segurava há tanto tempo. Ainda com a arma nas mãos.

Há muitos quilômetros dali, Raquel mais uma vez era obrigada a passar o recreio escondida dentro do banheiro. A garota mais popular da escola não lhe deixava em paz fazia meses. Desde que colocara o maldito aparelho nos dentes!

Parou de mastigar o lanche abruptamente e encolheu as pernas em cima do vaso sanitário em que estava sentada, assim que ouviu a porta do banheiro se abrir. Os passos ecoavam pelo ambiente ao som das sandálias de salto que desfilavam para lá e para cá. Pararam em frente ao reservado onde estava encolhida. Alguém esmurrou a porta:

– Eu sei que está aí dentro, boca de lata! Não pode ficar aí para sempre. Estarei aqui fora te esperando!

Raquel só soltou o ar novamente quando ouviu os passos se afastarem e a porta do banheiro bater. Tentava sem sucesso segurar as lágrimas de medo e raiva. Estava quase desistindo quando sentiu seu celular vibrar. Ao destravar a tela, uma voz robótica feminina dominou o ambiente: “Olá, Raquel.”

– Quem é você?!

“Sou sua assistente digital.”

Não fale com ninguém

Estávamos eu e minha amiga voltando da aula de ballet. As duas usavam o uniforme composto por collant preto e meia calça rosa por debaixo dos shorts e camisetas, que disfarçavam as nossas curvas de futuras mulheres que começavam a despontar. Tínhamos o cabelo preso em um coque no alto da cabeça. Parecíamos duas irmãs. Mas não lembro seu rosto, ou seu nome. Não lembro quem era ela.

Mas o mais importante é que estávamos juntas. Sabíamos que não deveríamos nunca andar sozinhas pelas ruas. Era perigoso. Mesmo se fosse no meio da tarde, com o sol castigando nossas nucas, e por um caminho tão familiar, que nos levava de volta para casa três vezes por semana, após nossas amadas práticas de dança.

Caminhávamos despretensiosamente, conversando com empolgação. Às vezes treinávamos uma pirueta ou algum salto diferente entre os desníveis da calçada. Apesar das risadas, estávamos sempre atentas. Olhando para trás, nos certificando que nenhum estranho ameaçador nos seguia.

Já tínhamos os nossos pontos estratégicos caso precisássemos nos abrigar: a padaria da esquina, a floricultura dois quarteirões a frente e a lojinha de aviamentos logo depois. Passados esses estabelecimentos, já estaríamos muito próximas de casa.

Dobramos a direita e iniciamos a pior parte do caminho: a subida. Depois de uma hora e meia nas pontas dos pés, saltando e rodopiando, nossas pernas sempre reclamavam nessa parte do trajeto. Então, como de costume, diminuímos o passo.

Conversávamos alegremente, mas eu não lembro sobre o quê. Estava faminta e com sede. O dia estava quente, deixando meu pescoço suado e minha garganta seca. Passamos pela porta da padaria, e tudo o que mais desejava era entrar lá e comprar um enorme suco de melancia. Mas não tínhamos dinheiro. Nunca andávamos com dinheiro quando estávamos sozinhas na rua.

Arrastando as pernas fomos passando pelo quarteirão seguinte. A rua do bairro estava vazia. Ninguém se dispunha a passear por lá debaixo daquele sol escaldante de verão. No asfalto à frente, era possível visualizar a miragem de poças d’água reluzindo, mas que nunca existiam de fato quando nos aproximávamos.

A subida agora estava na metade, e já não tagarelávamos com tanta empolgação. Poupávamos nossas energias para conseguirmos chegar em casa. Em tardes como aquela, tinha a sensação de que estava atravessando um deserdo hostil, e que os cinco quarteirões que tínhamos que vencer, eram na verdade cinco quilômetros.

Passamos pela floricultura, e uma brisa gelada e convidativa nos recebeu. Era o ar-condicionado que mantinha as plantas vivas naquele calor. Mais alguns metros, e a senhorinha dona da loja de aviamentos nos acenou lá de dentro. Nunca tínhamos conversado, mas nos considerávamos conhecidas. Era sempre o mesmo aceno, três tardes por semana.

Finalmente estávamos chegando ao topo da rua, e ao fim daquele martírio. Tudo continuava deserto e silencioso. Até que vimos um movimento no ponto de ônibus logo a frente, que era o marco do final da subida. Uma criatura estava sentada lá. Era um cão. Mas não era um vira-lata comum. Tinha o pelo curto, alaranjado. Focinho longo, orelhas pontudas e alertas. Estava sentado no banco do ponto, com as patas traseiras cruzadas uma sobre a outra, como uma mulher elegante. Usava um chapéu de feltro cinza escuro e fumava um cigarro que segurava com sua pata direita.

Podíamos sentir o cheiro do tabaco ao nos aproximar. Diminuímos o passo até parar hipnotizadas por aquela visão inusitada. O cão nos encarou de volta por um momento eterno. De repente a criatura começou a se expandir, crescer e se transformar em outra coisa.

– Não falem com ninguém! Não falem com ninguém! Não falem com ninguém!

Enquanto recitava o mantra sem parar, o cão se transformava em um homem velho, robusto e enorme aos nossos olhos. Tinha os olhos fundos focados em nós. As unhas compridas e amareladas, como garras. E ainda usava o chapéu de feltro.

Enfim conseguimos sair da inércia paralisante que nos prendia. Gritamos com toda a força de nossos jovens pulmões e saímos correndo em direção ao prédio, o mais rápido que conseguimos.

Subi as escadas da entrada do edifício sem olhar para trás. O porteiro abriu o portão assim que me viu. Entrei assustada e o fechei com força. Olhei novamente para a rua: estava deserta. Não havia nada e nem ninguém no ponto de ônibus. E minha amiga tinha desaparecido. Nunca mais a vi.

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