O texto a seguir contém spoilers. Se você ainda não leu o Volume 1 da trilogia “As cores de Sophia” não prossiga.
Leia o livro primeiro! 😉
Lucas
Caminho pelo estacionamento do Memorial da Saúde inspirando seu ar tão familiar: me sinto em casa. Depois de alguns meses fora, palestrando em vários congressos internacionais, não percebi como sentia falta daqui. Nem mesmo o aperto do elevador, sempre além da sua capacidade máxima, me deixa desconfortável. Percebo os olhares de residentes e outros colegas médicos que recaem sobre mim: luzes curiosas, admiradas.
Saio da sufocante caixa de metal no sétimo andar, e adentro pelas portas de vidro escuro da UTI. Assim que meus primeiros passos ecoam dentro do setor, ouço outros apressados por todos os lados.
— Ele chegou! Ele chegou! — É sussurrado de maneira urgente por vozes aflitas.
Entro no quarto dos médicos tentando disfarçar um sorriso: é impossível não me divertir com a apreensão e euforia que a minha presença causa, cada vez que entro aqui. Eu deveria estar acostumado com as cores atônitas que me perseguem desde os meus primeiros diagnósticos, realizados ainda na faculdade. Me dediquei à profissão, e com mérito, alcancei uma ascensão meteórica na carreira: abdiquei da minha vida pessoal e sempre me esforcei para mostrar minha capacidade e seriedade frente a tantos outros colegas, muito mais experientes do que eu.
Nunca deixei de me ver nas luzes amedrontadas dos residentes — estava entre eles há pouquíssimo tempo. Porém, preciso impor o respeito e lembrá-los que sou o chefe aqui, que exijo dedicação e empenho. A qualidade do atendimento da UTI é de minha responsabilidade e reflete a minha competência. Por isso, não admito corpo mole no meu setor.
Saio do quarto e me dirijo ao primeiro leito, para iniciarmos a ronda da manhã. Mesmo tendo ficado tanto tempo fora, o ritual de sempre se repete: o exército de jaleco branco me aguarda ao redor do doente: residentes, fisioterapeutas, enfermeiros. Um silencio denso pesa sobre eles, e escuto apenas suas respirações tensas, misturadas ao som mecânico do respirador.
— Muito bem, — consulto minhas anotações — quem está com o paciente do leito 701?
Julia, a residente do segundo ano de Terapia Intensiva, começa a me contar a respeito do caso, lendo o prontuário. Discretamente, levanto a pálpebra do doente intubado e constato que se trata de um choque séptico causado por uma pancreatite necro-hemorrágica. O quadro ainda é grave, sem perspectiva de melhora.
— E você pode me dizer por que esse paciente ainda não tem uma traqueostomia, se ele não tem previsão de extubação? — Pergunto sem encarar a aluna, tentando disfarçar a impaciência com um erro tão básico.
Ela apenas gagueja em resposta, demonstrando sua insegurança e falta de domínio da conduta necessária. Falhas que preciso corrigir.
— Bom, Dra. Júlia, acho que a primeira coisa que precisa fazer hoje é resolver isso com urgência. Se o paciente tiver alguma sequela traqueal causada pela intubação prolongada, será sua responsabilidade. Ou melhor, pela sua irresponsabilidade.
Levanto o olhar para encarar sua luz verde e me certificar de que a bronca surtiu o efeito necessário. Então, um movimento abrupto ao seu lado me chama atenção: alguém deixa uma pilha de prontuários cair e se espalhar no chão. Vejo uma outra residente, desconhecida, lutando para se equilibrar, enquanto cambaleia entre as pessoas até se apoiar no respirador. Com o movimento, acaba tracionando o tudo e o arrancando da garganta do paciente. Uma série de alarmes ensurdecedores são disparados. Antes que eu precise me mexer, a equipe inteira se prontifica a acudir o doente, realizando uma nova intubação, da maneira como eu os treinei.
Todos se movimentam com a urgência que a situação exige, menos ela: a desastrada que causou todo o reboliço na minha ronda. Permanece parada na minha frente, feito uma estátua, me encarando.
A encaro de volta, franzindo o cenho para demonstrar a minha reprovação. A visão da aluna me impacta com tanta força que não consigo formular uma frase. Sinto um arrepio eletrizante percorrer o meu corpo, a descarga de adrenalina disparar o meu coração e quase não consigo respirar quando reparo em seu belo rosto: arregalados, espantados, me fitam olhos cor de mel com pupilas negras. Dois pontos escuros, profundos e vazios — como os meus. Me sinto sugado pela força gravitacional desses dois buracos negros, e preciso de um esforço sobre-humano para controlar os efeitos da colisão que esse olhar teve sobre mim.
Em toda a minha vida, nunca encontrei pupilas como as minhas.
São os olhos mais lindos que já vi.
Lançamento presencial do volume II, “Cores das Chamas e da Escuridão”, em 10/12/22, às 19h, na Livraria da Vila do Shopping Iguatemi Campinas.
O volume I da trilogia “As cores de Sophia” – “Cores de Vida e de Morte”, eleito o melhor suspense de 2021 pelo Prêmio Book Brasil, e o volume II, “Cores das Chamas e da Escuridão” já estão disponíveis no formato físico e digital. É só clicar no link e deixar o meu universo se misturar ao seu. Tenho certeza de que nunca mais enxergará a realidade da esma maneira.
O texto a seguir contém spoilers. Se você ainda não leu o Volume 1 da trilogia “As cores de Sophia” não prossiga.
Leia o livro primeiro! 😉
Pedro
Não sei por que deixo a Sophia me convencer a fazer essas loucuras. Tem algo de diferente com ela. Desde a faculdade, me deixa atônito quando me olha nos olhos e parece estar lendo os segredos mais profundos da minha alma – aqueles que nem mesmo eu conheço. Ou quando descobre os diagnósticos mais absurdos, como se estivessem estampados na testa dos pacientes, com algum tipo de tinta que somente ela é capaz de enxergar. Já desisti de tentar entender as partidas de truco.
Depois, me vem com essa história de mortes erradas, assassinatos, tráfico de órgãos… Se minha mãe soubesse que eu a ajudei a invadir a sala administrativa do Memorial, acho que ela mesma me prenderia. E agora estamos aqui, andando no meio do mato, contornando um galpão no meio do nada, cheio de criminosos. Por que eu continuo fazendo essas loucuras por ela? Bom, é isso que os amigos fazem, não é? Ela é a minha melhor amiga. E tenho certeza de que ela faria por mim também.
Finalmente alcançamos a parte de traz do galpão retangular. Todos desviamos dos entulhos espalhados no escuro até estarmos espremidos contra a parede, tentando não fazer barulho, nem mesmo com a nossa respiração. Luiz espia a lateral do prédio e faz sinal para avançarmos. Seguimos em fila, rentes às sombras, tentando permanecer invisíveis. Não racionalizo o que estamos fazendo: para mim está claro que se trata de suicídio. Porém, jamais deixaria Sophia fazer isso sozinha.
Quando alcançamos a frente do prédio, Bia aponta para uma sombra na parede e parte naquela direção sem nos dar a chance de responder. Sophia a segue, e percebo que a sombra se trata de uma porta. Engulo seco, arrumo meus óculos que escorregam sobre meu nariz suado e tento controlar o pânico. Entro pela abertura também.
As duas estão protegidas atrás de um enorme contêiner, e há outros espalhados pelo interior do galpão. Me junto a elas e sou acompanhado por Luiz e Felipe. Assim que a penumbra nos engole, uma das ambulâncias sai pelo portão automático e se perde na estradinha de terra que nos trouxe até aqui.
Bia tira fotos sem parar. Vejo as caixas térmicas, com os possíveis órgão contrabandeados, sendo divididas entre as duas ambulâncias que restaram. Bia mostra o visor da máquina para Sophia e ambas olham na direção do contêiner do lado oposto do galpão. Tenho a impressão de ver um vulto se escondendo lá, mas meus óculos não me ajudam a ver com nitidez a essa distância.
— O que estamos fazendo aqui? — Pergunto ansioso para Luiz.
Ele encolhe ombros:
— Acho que estamos esperando os policiais…
Sophia e Bia começam uma discussão muda, com gestos enfáticos. Felipe pega a máquina fotográfica das mãos de Bia:
— Eu vou, sou mais rápido. Consigo atravessar sem ser visto.
Sophia protesta, mas Felipe sai correndo de nosso esconderijo, tentando chegar ao próximo contêiner. Mal tenho tempo de entender o que está acontecendo, quando ela também dispara na direção de Felipe, sem nenhuma explicação.
Ouço o tiro.
Sophia cai imediatamente no chão e uma poça de sangue desabrocha sob ela. Sem perceber, também estou correndo na sua direção.
A alcanço no momento em que sons estridentes de sirenes invadem o galpão e se misturam a gritos, mas os ignoro. Só vejo Sophia, pálida, com o rosto suado, se afogando em seu próprio sangue, que mina por um pequeno orifício negro em seu abdômen. Fico paralisado, escutando o choro desesperado de Bia atrás de mim.
— Está tudo bem, — minha melhor amiga balbucia tentando sorrir — não está doendo.
Vejo a vida deixar o seu semblante quando ela perde a consciência. O mundo parece desmoronar ao meu redor, e eu simplesmente não consigo me mexer. Estou apavorado!
— Eles não estão cinzas! Eles não estão cinzas! — Uma voz conhecida me desperta.
Dr. Lucas se materializa ao nosso lado, me empurrando para conseguir chegar até o corpo de Sophia. Ele e Felipe trocam olhares desesperados.
— O pulso está fraco. — Felipe constata.
Dr. Lucas procura a pulsação com os dedos, de maneira segura e profissional. Em seguida, começa as compressões cardíacas:
— Ela está em parada. Rápido, faça as respirações!
Enquanto meu professor massageia o coração estático, Felipe faz as respirações boca-a boca. Eu continuo sem me mexer. Tenho a sensação de que vou desmaiar sobre toda a volemia de Sophia, que tinge de rubro o chão de cimento esburacado.
— Pedro! Pedro! — Luiz me sacode aflito. — Está me ouvindo?
— Sim, acho que sim.
— Olhe para mim. — Ele desvia meu rosto para seu olhar assustado. — A Sophia precisa de você, tá legal? Se concentre!
Concordo freneticamente, sentindo as lagrimas escorrerem e afogarem a minha visão.
— Ótimo. Agora ache alguma coisa para estancar o sangramento. Consegue fazer isso?
— O pulso voltou! — Dr. Lucas anuncia.
Me afasto de onde estão e tenho apenas uma vaga noção da polícia que invade o galpão, das armas em punho, das algemas, das prisões. Caminho pensando no que poderia usar para interromper um sangramento tão grande, quando me vejo parado em frente as portas abertas de uma das ambulâncias. Entro tropeçando nas caixas térmicas largadas ali. Abro a primeira gaveta que alcanço e encontro várias ampolas de medicação. Na próxima, material para intubação. Cilindro de oxigênio, frascos de soro fisiológico…
— Graças à Deus!
Pego um pacote de compressas e volto correndo para onde Sophia vive por um fio.
— As ambulâncias! — Grito e jogo o pacote para Felipe. — São UTIs móveis de verdade! E estão equipadas!
Vejo um lampejo de esperança no semblante de todos. Felipe faz um curativo compressivo da melhor maneira que consegue e os três carregam o corpo flácido e seco para dentro da ambulância.
Bia faz menção de ir com eles, mas entro em seu caminho. Apoio minhas mãos em seus ombros, que soluçam.
— Bia, é melhor você ir com o Thomas.
— Mas, eu não posso deixá-la… É a Sophia!
— Ela está em boas mãos. O Dr. Lucas é um grande médico. Nos encontre no Memorial.
Thomas finalmente aparece no meio da confusão que acontece ao nosso redor. Abraça Bia com cuidado e apreensão. Ela desmorona ao seu toque.
— Cuide dela, Pedro, por favor…
— Posso ajudar em algo? – Thomas oferece.
Penso por um instante.
— Pode. Precisamos do agente que seja o melhor piloto aqui presente.
Quando volto para dentro da ambulância, Sophia está intubada, recebendo litros de soro por um acesso profundo em seu pescoço, realizado de maneira magistral por Luiz. Perece estável, mas a mancha vermelha escura no curativo em seu abdômen não para de crescer.
O motor da ambulância é acionado. Nos sobressaltamos.
— Se segurem. — Moraes avisa antes de pisar fundo no acelerador e sair do galpão cantando pneu.
Em instantes estamos sendo sacudidos pela estradinha de terra, rumo à rodovia dos Imigrantes. A sirene já grita alto, fazendo meus ouvidos zunirem.
Felipe continua comprimindo o ferimento da melhor maneira que consegue.
— Alô, aqui é o Dr. Lucas Martinelli. Preciso falar com o chefe da cirurgia de emergência que está de plantão. É uma situação extremamente urgente…
Dr. Lucas continua falando ao telefone, preparando nossa chegada no Memorial. Troco olhares preocupados com Felipe.
— Ela vai ficar bem? — Pergunto.
— Tem que ficar.
Quando a ambulância alcança a Avenida do Bandeirantes, já de volta à São Paulo, o monitor cardíaco distara seu alarme estridente e uma linha reta aparece na tela.
— Outra parada cardíaca! — Constato e imediatamente me debruço sobre o peito de Sophia, reiniciando as compressões.
— Uma ampola de adrenalina. — Dr. Lucas assume o comando, como um maestro.
Luiz realiza a medicação, enquanto eu não diminuo o ritmo da massagem cardíaca.
— Ela precisa de mais volume. Mais um litro de soro… — ouço a voz do professor.
Minhas mãos começam a formigar, sinto o suor escorrendo pelo meu rosto. Olho desesperado para a tela do monitor, mas a linha se mantém estática.
— Deixa que eu faço agora. — Felipe assume o meu lugar.
Mais um ciclo de ressuscitação se reinicia. Conto os minutos aflito, sabendo que a cada segundo que se passa, sem a oxigenação adequada, as chances de sequelas neurológicas são imensas. Até mesmo, uma morte cerebral.
— Mais adrenalina!
Já se passaram nove minutos.
— Vamos lá, Sophia! Não faça isso comigo. — Felipe também está suado, com os braços trêmulos.
— Eu faço agora. — Lucas se posiciona e assume as compressões. Seu semblante é como uma máscara: profissional e inexpressivo. Mas eu sei o que aconteceu entre ele e Sophia. Sei que também está apavorado.
Onze minutos.
Já me sinto derrotado, e minhas esperanças começam a dissolver-se. Tudo ao meu redor fica nublado, e me sento em um canto da ambulância, deixando a cabeça cair sobre minhas mãos. Ouço o estalar das costelas cedendo à massagem e a respiração de Lucas, ofegante pelo esforço. Tiro os óculos e deixo as lágrimas escorrerem – não adianta mais. É muito tempo. Não vai sobrar mais nada da Sophia aí dentro. Nada mais de olhares profundos, diagnósticos mirabolantes, sorrisos amigos, abraços apertados. Nada mais de minha melhor amiga.
— Ela voltou!
Me levanto sobressaltado, ao som monótono do monitor cardíaco. A ambulância já está subindo na rampa de acesso da entrada de emergência do pronto-socorro do Memorial.
— Quanto tempo foi de parada? — pergunto.
— Quinze minutos. — Luiz responde.
As portas traseiras do carro se abrem e nos deparamos com toda a equipe de cirurgia nos esperando. Descemos a maca com o corpo imóvel de Sophia, que é rapidamente levada para dentro do hospital. Dr. Lucas permanece ao seu lado, e se mistura no meio dos cirurgiões. Em câmera lenta, assistimos todos se movimentando com urgência e se perdendo dentro do Memorial, enquanto as portas da entrada de emergência se fecham na nossa frente.
Eu, Luiz e Felipe permanecemos imóveis ao lado da ambulância, sujos de sangue, suados, cansados e assustados. Ainda olhamos para as portas fechadas.
— Quinze minutos é muito tempo. — Digo. — Vocês sabem disso, não?
Lançamento presencial do volume II, “Cores das Chamas e da Escuridão”, em 10/12/22, às 19h, na Livraria da Vila do Shopping Iguatemi Campinas.
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