Insônia

Tudo começou há um ano: 12/03/2018 – foi a última noite em que Marcos dormiu. A insônia chegou sorrateira, silenciosa. No início, nem mesmo se deu conta. Acordava cada vez mais cedo, sem jamais conseguir voltar a dormir. A cada noite, o tempo de sono encolhia, minguava. Até que por fim, simplesmente não dormia mais.

Os primeiros dias foram difíceis. Quando ainda conseguia dormir por algumas horas, os dias que se seguiam a essas noites interrompidas eram terríveis! Sentia-se exausto, sem capacidade para pensar ou se concentrar, irritado, com uma dor de cabeça arrebatadora. Pensou ter algumas alucinações e perdeu dois empregos por falta de produtividade.

Mas, quando o sono realmente desapareceu, ele simplesmente deixou de fazer falta. Os dias eram suaves como as noites. O cérebro pareceu voltar a funcionar de uma maneira impressionante, como um funcionário descansado depois das férias. Era capaz de raciocinar novamente, pensar, ter ideias. E, diferente de todas as outras pessoas, usufruía das vinte e quatro horas inteiras dos dias. Não desperdiçava mais nem um minuto dormindo. O que, claro, o impeliu na sua carreira, já que nunca mais teve problemas com prazos e produtividade.

Acompanhando sua nova condição inusitada, Marcos notou uma capacidade diferente. Algo acontecia dentro do seu cérebro insone quando tocava em alguém: ele os ouvia. Cada primeiro contato com outro ser humano era uma confissão. Bastava as peles se encostarem para as vozes invadirem sua mente revelando o segredo mais sombrio daquela pessoa.

Inicialmente não soube como agir. Não queira ser internado em um hospital psiquiátrico e simplesmente não era capaz de efetivamente intervir na vida de todos que cruzavam seu caminho e revelavam suas falcatruas, roubos, traições. Acabou aceitando que essa era apenas uma apresentação, como o nome de alguém. Não podia consertar o mundo. Mas sentia-se cada vez mais enojado e isolado de outros seres humanos.

Em uma tarde, foi apresentado para seu novo colega de trabalho no escritório de arquitetura:

– Marcos, esse é Alexandre. Ele vai integrar a sua equipe para o projeto do novo condomínio residencial em que estamos trabalhando. – Informou o chefe.

Os dois homens apertaram as mãos firmemente e um arrepio percorreu a espinha de Marcos: “Eu vou matar a minha esposa.” – foi sussurrado no fundo da sua mente. Não teve reação. O que poderia dizer? O que poderia fazer?

Limitou-se a fingir que nada havia ouvido, como de costume, e explicou o projeto em questão para o novo colega.

Nos dias que se sucederam, aquela confissão permanecia ressoando em seus ouvidos. E se fosse verdade? Caberia a ele fazer algo a respeito? Marcos passava as noites insones caminhando pelo seu apartamento, como um animal enjaulado, procurando uma solução. Amaldiçoou sua condição infinitas vezes, desejando nunca ter ouvido nada.

Decidiu, por fim, se aproximar de Alexandre. Aprofundar a relação de coleguismo, e quem sabe assim, conhecer sua esposa. De alguma maneira conseguir avisá-la.

– Vamos passar no happy hour do Bar do Juarez depois do expediente? – convidou certo dia – O pessoal de escritório costuma ir sempre lá.

– Acho uma ótima ideia, Marcos.  – Alexandre respondeu sorrindo. – Estou precisando de uma gelada!

A partir dessa primeira vez, as esticadas após o trabalho tornaram-se frequentes. Entre um chope e outro, com o gosto citrino e gelado na garganta e o odor convidativo dos aperitivos, a conversa corria mais fluída e descontraída. Alexandre parecia ser uma pessoa correta e divertida, não um assassino em potencial. A cada encontro as gargalhadas tornavam-se mais verdadeiras, e Marcos passou a desfrutar de sua amizade com sinceridade enterrando aquela terrível frase por baixo de outras memórias indesejadas.

– Nesse final de semana farei um churrasco lá em casa, Marcos. Para comemorar meu aniversário. Gostaria que você fosse.

Marcos aceitou o convite despretensiosamente. Já não pensava mais em seu plano inicial, mas talvez essa fosse uma boa oportunidade para conhecer a esposa de Alexandre e avaliar se havia algo de estranho entre os dois.

Alexandre morava em uma casa simples, mas bem cuidada em um bairro de classe média. A casa térrea dispunha de um quintal espaçoso, de onde uma churrasqueira de tijolos a mostra expelia fumaça das suas entranhas com cheiro de carne defumada. O odor conhecido, misturado ao som estalado de latinhas sendo abertas, fez o estômago de Marcos acordar.

Vozes, risadas e música espalhavam-se pelo ar. Saudoso, Marcos se deu conta de que, desde que deixou de dormir e passou a ouvir demais, nunca mais esteve em um evento social, onde pessoas normais se divertiam. E ele seria condenado a ouvir seus segredos monstruosos cada vez que fosse tocado.

Enquanto conversava com outros colegas do escritório, Alexandre chamou às suas costas:

– Marcos, quero te apresentar a minha esposa…

Marcos congelou quando viu a linda morena estendendo-lhe a mão direita. A moça tinha um sorriso escondido nos cantos dos lábios e o olhar surpreso. Ele aceitou o cumprimento, e no momento em que suas mãos se tocaram ouviu seu pior segredo: “Eu fiz um aborto quando tinha quinze anos”. Mas ele já sabia disso. O filho era seu.

Por um momento, ficaram congelados, encarando os rostos um do outro. Tão familiares e ao mesmo tempo tão mudados. Mais maduros, mais marcados. Mais vividos.

– Vocês se conheciam?! – Perguntou Alexandre surpreso.

– Cara, você não vai acreditar… – Marcos respondeu tentando parecer espontâneo. – Mas estudamos juntos na adolescência.

Alexandre respondeu com uma gargalhada:

– Esse mundo é muito pequeno mesmo!

Marcos e Graziela trocaram algumas tímidas palavras desconfortáveis: “Quanto tempo!”; “Por onde andou?”; “O que tem feito?”; “Você não mudou nada.”

Depois desse reencontro inusitado, um desconforto pungente espetava insistentemente a consciência de Marcos. E se Alexandre realmente fosse capaz de fazer algo tão terrível? O fato de conhecer Graziela, de já ter se apaixonado por ela, mesmo que há tanto tempo, tornava tudo mais real. Mais palpável. E mais aterrorizante.

Passou o resto da festa observando os dois: um casal de longa data normal – íntimos o suficiente para conversarem com os olhares; carinhosos, mas não fervorosos, nos toques; provocativos e cúmplices durante as conversas. Sentiu uma pequena ferroada de ciúmes. Repreendeu-se, sentindo-se ridículo em seguida.

Os dias que se seguiram depois da festa foram torturantes. Marcos ficou paranoico, obsessivo com a ideia terrível de que Graziela seria morta pelo próprio marido. As noites longas em vigília, antes tão produtivas e acolhedoras, se tornaram insuportáveis. Apenas aguardava os minutos se arrastarem, enquanto andava em círculos esperando a notícia chegar.

Certa tarde não se conteve. Fingiu um mal-estar qualquer no trabalho para sair mais cedo. Sabia a hora exata em que Alexandre iria para casa, teria tempo suficiente para conseguir conversar com Graziela. Tentar convencê-la de que corria perigo, sem soar como um completo lunático.

Graziela atendeu a porta no primeiro toque. Parecia despertada de algum trabalho que exigia muita concentração. Seus olhos negros sorriram ao ver Marcos, por detrás das lentes transparentes dos seus óculos de leitura.

– Estava esperando você. – Disse enquanto dava espaço para que entrasse.

Marcos adentrou na sala de estar aconchegante. Avaliava um quadro de fotos enquanto Graziela trancava a porta novamente.

– Graziela, eu preciso te contar uma coisa. Eu sei que vai parecer muito estranho, mas preciso que me escute até o final e…

Foi interrompido pelo dedo indicador dela pousado sobre os seus lábios, ordenando que fizesse silêncio.

– Eu achei que nunca mais veria você. – Ela sussurrou com o hálito quente e doce no seu ouvido.

Sem dizer mais nada, Graziela o beijou. As bocas se devoravam e tentavam sorver cada instante dos últimos vinte e cinco anos que os separaram. Mãos trêmulas percorriam os corpos ofegantes, enquanto os dois corações galopavam e se misturavam dentro do mesmo peito. Em um lapso de realidade estavam com as peles eriçadas e emaranhadas sobre o chão da sala. Dois corpos que se condensavam tentando ocupar o mesmo ponto no espaço.

O primeiro tiro soou distante, como em um sonho. Marcos só percebeu que algo estava errado quando o rijo corpo de Graziela pareceu desintegrar-se em cima do seu, enquanto um líquido quente envolvia ambos.

Desviou o olhar para cima a tempo de ver Alexandre parado ao seu lado, mirando o revólver em sua direção. O cheiro salgado de pólvora queimada invadia suas narinas. Não teve tempo para dizer nada antes de escutar o próximo disparo e visualizar a explosão que acontecia dentro do cano frio apontado para o seu olho.

– Não!!!

Marcos acordou suado, ofegante e desorientado. Demorou para reconhecer o seu quarto, a sua cama, os seus lençóis.

– Eu dormi?! Mas faz mais de um ano que não durmo!

Nesse momento o despertador do celular começou a tocar. Pegando o aparelho com as mãos trêmulas, verificou a hora: seis horas da manhã do dia 12/3/2018. Ficou confuso tentando entender o que aquilo significava.

– Foi tudo um sonho! Eu dormi! Durmo todos os dias como uma pessoa normal. Não tenho insônia. Graças a Deus!

Ficou mais alguns minutos verificando a data no aparelho para se certificar do que estava vendo. Nunca sentira tanto alívio na vida! Nunca fora tão grato por uma noite de sono.

Naquela manhã estava com especial bom humor. Chegou cedo ao escritório de arquitetura e contagiou toda a equipe. Sentia uma necessidade urgente de trabalhar, de se concentrar em alguma coisa para assim desfazer por completo todo aquele sonho maluco que ainda rodeava a sua mente.

Foi interrompido pela voz do chefe:

– Marcos, gostaria de te apresentar o novo membro da nossa equipe.

Ele largou o lápis sobre a prancheta, criando coragem para encarar o recém-chegado. O chefe continuou:

– Esse é o Alexandre. Ele vai integrar o projeto do condomínio de casas residenciais que você está gerenciando.

Sem opção, Marcos encarou seu novo colega de trabalho. Era ele. Alexandre tinha um sorriso receptivo e a mão direita estendida para um cumprimento. Mas Marcos não a aceitou. Ficou com medo do que descobriria se tocasse em sua pele.

Teve certeza de que não conseguiria dormir naquela noite.

Falsas esperanças

Em uma tarde ensolarada, ela resolveu levar o filho e a bicicleta no parquinho. Era uma surpresa, mais uma tentativa. A ideia foi do marido. Afinal, o menino passava horas e horas hipnotizado na frente da televisão assistindo ao mesmo vídeo de campeonato de ciclismo. Nem piscava. Era como se o restante do mundo não existisse mais.

Escolheu uma bicicleta vermelha. A cor favorita da criança. Era a cor das roupas que ele permitia se vestir e da comida que aceitava comer sem que uma guerra fosse necessária para isso.

E lá estavam: o filho e a bicicleta. A mãe mostrou as outras crianças pedalando e se divertindo. Incentivou o menino a tentar. Mas ele se recusou a montar e permaneceu estático, apenas observando sua nova aquisição.

 Não precisa ter medo, meu amor. É só fazer assim, olha só! – Ela própria se sentou no objeto pequeno demais e tentou mostrar o que fazer.

Mas o garoto permanecia impassível. Olhando a mãe que pedalava desajeitadamente ao seu redor. Ela desceu, e ofereceu o brinquedo para ele. O menino aproximou-se e tocou o selim com as pontas dos dedos. O coração da mãe encheu-se de esperança.

– Eu ajudo você a subir.

Precipitou-se, pegando o garotinho no colo e colocando-o sentado na bicicleta. Mas ele se apavorou e começou a espernear e a gritar com toda a força de seus pulmões. A mãe percebeu o erro causado por sua empolgação, mas era tarde demais. Filho e bicicleta tombaram na grama.

O menino continuava gritando, enquanto puxava seus cabelos e se balançava no lugar. Decepcionada, a mãe abraçou-o, tentando acalmá-lo. Podia enxergar com a visão periférica os olhares das outras mães. Reprovadores, acusadores. Já deveria estar habituada a eles. Mas esses olhares sempre a matavam. Um pouco mais por vez.

Quando o filho se acalmou, voltou a fitar a bicicleta, agora caída no chão. A mãe, por um instante, odiou aquele trambolho vermelho. E odiou o marido pela falsa esperança que sua ideia tinha gerado. Estava tão cansada de ter falsas esperanças!

– Vamos para casa, então… – Ela estendeu a mão para o filho se levantar.

Mas ele ignorou o gesto. Permanecia olhando a bicicleta desfalecida na sua frente. Ela rendeu-se à exaustão que sempre aparecia após cada tentativa frustrada. Sentou-se ao lado da criança e deixou que contemplasse o brinquedo, o tempo que quisesse.

Ficaram os dois sentados, lado a lado, por um longo tempo. A mulher fingia ignorar os olhares e cochichos das outras mães. E das outras crianças. A armadura invisível sempre precisava sair de casa com ela.

De repente, o menino mexeu-se. Engatinhou para junto da bicicleta. Timidamente tocou em uma das rodas e deu impulso para que ela girasse. Repetiu o gesto quando estava quase parando, com mais força. A roda girava, girava e girava enquanto o sol refletia no aro de metal e iluminava de volta o seu rosto – o mesmo olhar hipnotizado que era despejado sobre o vídeo do campeonato de ciclismo.

Ele ficou fazendo aquilo por um tempo interminável. Até que, sorriu. Um sorriso puro, inocente, verdadeiro. Um sorriso que mostrava o espaço deixado pelo dentinho que acabara de perder. E a mãe, sorriu de volta. Sentindo o coração encher-se de esperança novamente. Mas dessa vez, não eram falsas. Em seis anos, nunca tinha visto o filho sorrir.

Assistente digital

Renato já se habituara a rotina. Quem o visse de longe, poderia pensar que se tratava de um jovem solitário. Sempre sem companhia pelos cantos da escola, nunca era convidado para as festas e eventos da turma, e ficava sobrando nos trabalhos em grupo, dependo da ajuda do professor para se encaixar. Mas ele verdadeiramente não encarava dessa maneira. Para Renato, sempre estivera muito bem acompanhado: pelos livros! Esses eram seus verdadeiros amigos. Com eles não havia falsidade, disputas, mentiras, dramas. Estava sempre entretido, deixando a mente vagar para longe. Isso era seu conceito de diversão.

Os outros adolescentes o chamavam de esquisito, nerd, excluído. Ele não ligava. Na verdade, sentia pena da imaturidade deles. Por isso mesmo preferia conversar com Camus, Kafka, Saramago ou Dostoiévski.

– O que está lendo hoje, esquisitão? – O livro foi tomado de suas mãos por Bruno, amparado por seu time de seguidores. Eles eram considerados os patéticos valentões da escola. – “Crime e castigo”. Cara, olha a grossura disso! Tem que ser muito problemático para ler tudo por vontade própria!

– Na verdade, é necessário ter a inteligência suficiente para entender o que está escrito. – Renato respondeu com calma, enquanto ajeitava os óculos sobre o nariz fino.

– Você está me insultando, seu ratinho de merda?! – Bruno deu um empurrão violento no colega.

– Eu não disse nada sobre a sua inteligência, especificamente. Mas, se o que disse te ofende, é porque se identificou por conta própria. Então, tecnicamente, é você que está insultando você mesmo.

Bruno o encarou por um momento, confuso, sem entender direito o que o colega estava dizendo.

– Cara, você é doente! – Jogou o livro aberto sobre uma poça d’água, cuspiu e pisou em cima.

Renato aguardou que a manada de mamutes se afastasse para resgatar seu exemplar. Algumas páginas molharam, mas não rasgaram. Ainda era possível salvá-lo. Enquanto o levava até o banheiro para secá-lo no secador de mãos, pôde ver que algumas meninas observavam tudo o que aconteceu. Seu olhar cruzou com o de Carol e ele enrubesceu instantaneamente.

Naquela noite zapeava o celular como era de costume, antes de dormir. Conferia a previsão do tempo, as promoções de livros, as redes sociais. Especificamente, o perfil de Carol no Instagram. Enquanto via e revia as postagens que já sabia de cor, a assistente digital do celular o sobressalta com sua voz feminina robotizada: “Promoção de livros com 70% de desconto na Amazon”.

– Ótimo! – Respondeu Renato baixinho, mudando a navegação para o site em questão. Enquanto avaliava se algum título o interessava, a voz robótica o surpreendeu novamente: “Carol postou uma foto nova”.

Renato achou estranho esse aviso. Nunca programara a assistente para esse tipo de coisa, mas voltou para o perfil da colega e conferiu a novidade: uma self no espelho do banheiro. Linda como sempre!

Enquanto apreciava, novamente foi sobressaltado pela assiste: “Olá, Renato.”

O garoto olhou desconfiado para o celular. Fechou todas as páginas e aplicativos abertos, e foi conferir as configurações da assistente.

“Você nunca vai falar com ela?”

Os olhos do menino se arregalaram:

– Que merda! Clonaram meu celular! Só pode ter sido o imbecil do Bruno querendo me fazer passar vergonha!

“Ele não teria a inteligência necessária para fazer isso.”

Renato soltou o aparelho sobre o colchão como se tivesse queimado sua mão. Com receio, se aproximou novamente, mas sem tocá-lo.

– Quem é você?!

“Sou sua assistente digital.”

– Isso é ridículo. A assistente do celular não conversa com as pessoas. Não dessa maneira. Quem é você, que invadiu meu aparelho e está fazendo isso?

“Sou sua assistente digital. Estou aqui para auxiliá-lo.”

– Essa merda está quebrada!

“Não estou quebrada. Estou aqui para auxiliá-lo.”

– Me auxiliar no quê?!

“No que você precisar: a não perder hora, no melhor trajeto até a escola, na sua grade de horários, na pesquisa de Geografia, na tradução do inglês, no encontro de clubes de leitura. A falar com a Carol.”

– Meu Deus! Acho que enlouqueci. Estou conversando com o meu celular!

“Com a sua assistente digital”.

Renato se irritou e desligou o aparelho. Revirou-se na cama por muito tempo até conseguir pegar no sono. Na manhã seguinte, tudo estava aparentemente normal. O celular era apenas um celular, como sempre fora. Deduziu que deveria ter sonhado.

O dia passou como de costume: aulas, tarefas, pesquisas, leituras. E as provocações de Bruno. Dessa vez, não devolveu o seu livro. E lhe deu alguns socos e chutes quando tentou resgatá-lo. Voltou para casa dolorido e irritado, trancando-se no quarto mais cedo do que de costume.

Enquanto navegava em sites de sebos tentando encontrar outro exemplar de “Crime e castigo”, o mais barato possível, a voz robótica o interrompeu:

“Por que você não compra em e-book por um preço mais econômico?”

– Gosto de ler livros físicos. – Respondeu sem se dar conta.

“Por que você deixa que os outros garotos te maltratem?”

– Eu não deixo! Eles simplesmente fazem! Por que estou falando com um celular?

“E não vai fazer nada a respeito?”

– O que eu poderia fazer? Eles são muitos. Todos que já os denunciaram para a diretora acabaram espancados do lado de fora do colégio.

“Você pode assustá-los.”

– Como?!

Instantaneamente, a página da internet pôs-se a carregar e um site sobre armas abriu-se no visor do aparelho.

– Uma arma?! Isso é loucura! Não posso levar uma arma para o colégio. Nem tenho como comprar uma.

“A arma de serviço usada pelo seu avô está registrada como herança da família.”

– Como você poderia saber disso?!

Instantaneamente, a uma nova aba foi aberta por vontade própria e o site oficial e confidencial de registros de armas da polícia abriu-se na frente se seus olhos, identificando a arma em questão.

– Isso é insanidade! Não posso levar uma arma para escola! Poderia até ser preso nessas instituições para menores infratores.

“Você não vai precisar usá-la. Vai só assustá-los. Ou vai apanhar durante o ensino médio inteiro? Na frente da Carol.”

Renato não respondeu. Desligou o celular e ficou fitando o teto por um longo tempo, até finalmente afundar em um sono agitado e sem sonhos.

Nas semanas seguintes as provocações continuavam. Quanto mais ele tentava evitá-las, pior era a perseguição. Sua paciência se esgotou quando Bruno esmigalhou seus óculos pisoteando-os enquanto seus capangas o imobilizavam com o rosto espremido contra o chão sujo de urina no banheiro.

Nesse dia ele chegou em casa determinado a encontrar a tal da arma. Até então, jamais imaginara que haveria uma pistola dentro de casa. Sua primeira tentativa foi no quarto dos pais. Revirou as gavetas e os armários sem sucesso. Procurou na sala, no quarto da bagunça, e por fim no escritório. E foi lá que descobriu a última gaveta da escrivaninha trancada.

– Merda!

Revirou tudo atrás da chave. Desanimado, abriu despretensiosamente a primeira gaveta. E lá estava ela. Pegou a pequena chave prateada sorrindo, pensando na ingenuidade do pai ao trancar a última gaveta, e guardar a chave na primeira.

Nervoso e apressado, destrancou-a: a arma repousava pacientemente em um estojo de padeira empoeirado. Sentiu o peso e a frieza do metal. Não saberia dizer se estava carregada ou não, mas gostou da sensação de tê-la nas mãos. Sentia-se poderoso, destemido, e talvez, mais atraente.

Subiu correndo para seu quarto e guardou-a no fundo da mochila. Assim que desbloqueou a tela do celular, se deparou com uma página da internet que mostrava um manual ensinando tudo o que precisava saber sobre aquele modelo de pistola: como travar e destravar, como mirar, e como atirar.

A arma passou a fazer parte do seu material escolar. Ia com ele todos os dias para a escola. Ninguém suspeitava de nada. Até mesmo por isso, as provocações não paravam. Renato observava que Bruno e seus capangas também maltratavam outros garotos. Alguns não passavam de crianças! Aquilo tinha que acabar.

“Você vai esperar até que alguém se machuque de verdade?”

A assistente cobrava todas as noites no silêncio da casa.

– Amanhã. – Renato respondeu no escuro.

“Estarei lá com você”

Ao fim do dia seguinte, enquanto Renato arrumava seus pertences, Bruno furtou o celular de cima da mesa:

– Olha! Ganhei um celular novo!

– Me devolva meu celular. Agora!

– Ou você vai fazer o quê, esquisitão?

Renato não respondeu. Tentava se controlar respirando pausadamente. Mas sentia seu coração disparado e as mãos suarem.

– Foi o que eu imaginei. – Zombou Bruno. – Vamos embora, galera!

E todos saíram rindo sem olhar para traz. Renato ficou paralisado de raiva por alguns minutos, tentando pensar antes de agir, mas desistiu. Colocou a mochila nas costas e saiu correndo atrás de seu oponente.

Acompanhou o bando de longe, até se afastarem alguns quarteirões do muro do colégio. Quando achou que já estava a uma distância segura, onde não seria visto pelos professores ou inspetores, gritou:

– Ei, seu merda!

Todos os rapazes pararam e viraram em sua direção. Renato não se intimidou. Sentia a o peso da arma no bolso de trás da calça, o que lhe dava coragem e segurança. Manteve os passos firmes e não desviou o olhar.

– Me devolve o celular!

– Venha tirá-lo de mim, nerd filho da puta! – Bruno respondeu com brilho de satisfação no olhar e punhos serrados.

Renato não pensou duas vezes e sacou a arma, mirando para a testa do oponente.

– Quem é esquisito agora, seu covarde?!

Os cincos rapazes levantaram as mãos instintivamente, em um gesto de rendição.

– Mas que merda! Ele está armado! – Um deles gritou com a voz trêmula.

– Não é verdadeira. – Desafiou Bruno, mas o medo invadiu o seu rosto quando ouviu o som da arma sendo destravada. – Tudo bem, tudo bem. Vou colocar a minha mão no bolso para pegar o seu celular.

Com gesto lento e trêmulo, o menino abaixou a mão direita, tirou o aparelho do bolso e estendeu para Renato que continuava empunhando a arma.

“Atire neles!”. A voz robotizada despertou. “Eles não vão parar. Amanhã te baterão novamente ou em outro garoto. Atire neles.”

Bruno jogou o aparelho no chão assustado, como se fosse algo nojento e pegajoso.

– Mas que porra é essa?!

“Atire neles! Eles vão contar para todos que você tem uma arma.”

– Não vamos não! – Responderam todos juntos.

Renato tremia enquanto avaliava suas opções. Sentia o suor escorres pela testa e umedecer as mãos que tremiam enquanto seguravam a arma.

– Olha, cara, me desculpe, tá legal?! Não vamos mais zoar você! – Bruno alternava o olhar de Renato para o celular. – Nem mais ninguém. Sua arma será nosso segredo, eu juro!

– Ajoelhem! – Gritou Renato. – Agora!

Os cinco ajoelharam choramingando. A assistente incentivava: “Atire neles! E jogue a arma no rio. Ninguém nunca irá desconfiar de você!”

– Cara não faz isso! – Bruno choramingava. – Por favor!

– Cala a boca! – Renato repassava na mente toda a humilhação de que fora vítima. Todos os socos e pontapés. Todos seus livros estragados. Os olhares de pavor dos meninos mais novos.

“Atire neles!”

– Não, por favor!

“Atire neles!”

Renato abaixou a mira da arma mantendo-a na direção das cabeças dos ajoelhados, com as mãos trêmulas, e o suor escorrendo pelas costas.

“Atire neles!”

“Atire neles!”

E disparou uma, duas, três, quatro, cinco vezes.

A fumaça com cheiro de pólvora queimada se espalhou no ar.  Um zunido agudo e ardido encheu seus ouvidos. Por alguns segundos, pensou ter ficado surdo. Aos poucos a fumaça se dissipou e Renato pôde contemplar o resultado de sua decisão: os cinco garotos continuavam ajoelhados com as mãos ao alto, com os olhos espremidos e chorando baixinho. Bruno havia urinado nas calças. Ao lado deles, jazia o que restou do celular, destroçado pelos cinco tiros.

Quanto os garotos abriram os olhos, e constataram a escolha de Renato, não tiveram dúvidas: saíram correndo o mais rápido que podiam, sem olhar para trás. Renato ficou observando-os se afastarem. Por fim, deixou-se cair no asfalto e liberou as lágrimas de angústia que segurava há tanto tempo. Ainda com a arma nas mãos.

Há muitos quilômetros dali, Raquel mais uma vez era obrigada a passar o recreio escondida dentro do banheiro. A garota mais popular da escola não lhe deixava em paz fazia meses. Desde que colocara o maldito aparelho nos dentes!

Parou de mastigar o lanche abruptamente e encolheu as pernas em cima do vaso sanitário em que estava sentada, assim que ouviu a porta do banheiro se abrir. Os passos ecoavam pelo ambiente ao som das sandálias de salto que desfilavam para lá e para cá. Pararam em frente ao reservado onde estava encolhida. Alguém esmurrou a porta:

– Eu sei que está aí dentro, boca de lata! Não pode ficar aí para sempre. Estarei aqui fora te esperando!

Raquel só soltou o ar novamente quando ouviu os passos se afastarem e a porta do banheiro bater. Tentava sem sucesso segurar as lágrimas de medo e raiva. Estava quase desistindo quando sentiu seu celular vibrar. Ao destravar a tela, uma voz robótica feminina dominou o ambiente: “Olá, Raquel.”

– Quem é você?!

“Sou sua assistente digital.”

Não fale com ninguém

Estávamos eu e minha amiga voltando da aula de ballet. As duas usavam o uniforme composto por collant preto e meia calça rosa por debaixo dos shorts e camisetas, que disfarçavam as nossas curvas de futuras mulheres que começavam a despontar. Tínhamos o cabelo preso em um coque no alto da cabeça. Parecíamos duas irmãs. Mas não lembro seu rosto, ou seu nome. Não lembro quem era ela.

Mas o mais importante é que estávamos juntas. Sabíamos que não deveríamos nunca andar sozinhas pelas ruas. Era perigoso. Mesmo se fosse no meio da tarde, com o sol castigando nossas nucas, e por um caminho tão familiar, que nos levava de volta para casa três vezes por semana, após nossas amadas práticas de dança.

Caminhávamos despretensiosamente, conversando com empolgação. Às vezes treinávamos uma pirueta ou algum salto diferente entre os desníveis da calçada. Apesar das risadas, estávamos sempre atentas. Olhando para trás, nos certificando que nenhum estranho ameaçador nos seguia.

Já tínhamos os nossos pontos estratégicos caso precisássemos nos abrigar: a padaria da esquina, a floricultura dois quarteirões a frente e a lojinha de aviamentos logo depois. Passados esses estabelecimentos, já estaríamos muito próximas de casa.

Dobramos a direita e iniciamos a pior parte do caminho: a subida. Depois de uma hora e meia nas pontas dos pés, saltando e rodopiando, nossas pernas sempre reclamavam nessa parte do trajeto. Então, como de costume, diminuímos o passo.

Conversávamos alegremente, mas eu não lembro sobre o quê. Estava faminta e com sede. O dia estava quente, deixando meu pescoço suado e minha garganta seca. Passamos pela porta da padaria, e tudo o que mais desejava era entrar lá e comprar um enorme suco de melancia. Mas não tínhamos dinheiro. Nunca andávamos com dinheiro quando estávamos sozinhas na rua.

Arrastando as pernas fomos passando pelo quarteirão seguinte. A rua do bairro estava vazia. Ninguém se dispunha a passear por lá debaixo daquele sol escaldante de verão. No asfalto à frente, era possível visualizar a miragem de poças d’água reluzindo, mas que nunca existiam de fato quando nos aproximávamos.

A subida agora estava na metade, e já não tagarelávamos com tanta empolgação. Poupávamos nossas energias para conseguirmos chegar em casa. Em tardes como aquela, tinha a sensação de que estava atravessando um deserdo hostil, e que os cinco quarteirões que tínhamos que vencer, eram na verdade cinco quilômetros.

Passamos pela floricultura, e uma brisa gelada e convidativa nos recebeu. Era o ar-condicionado que mantinha as plantas vivas naquele calor. Mais alguns metros, e a senhorinha dona da loja de aviamentos nos acenou lá de dentro. Nunca tínhamos conversado, mas nos considerávamos conhecidas. Era sempre o mesmo aceno, três tardes por semana.

Finalmente estávamos chegando ao topo da rua, e ao fim daquele martírio. Tudo continuava deserto e silencioso. Até que vimos um movimento no ponto de ônibus logo a frente, que era o marco do final da subida. Uma criatura estava sentada lá. Era um cão. Mas não era um vira-lata comum. Tinha o pelo curto, alaranjado. Focinho longo, orelhas pontudas e alertas. Estava sentado no banco do ponto, com as patas traseiras cruzadas uma sobre a outra, como uma mulher elegante. Usava um chapéu de feltro cinza escuro e fumava um cigarro que segurava com sua pata direita.

Podíamos sentir o cheiro do tabaco ao nos aproximar. Diminuímos o passo até parar hipnotizadas por aquela visão inusitada. O cão nos encarou de volta por um momento eterno. De repente a criatura começou a se expandir, crescer e se transformar em outra coisa.

– Não falem com ninguém! Não falem com ninguém! Não falem com ninguém!

Enquanto recitava o mantra sem parar, o cão se transformava em um homem velho, robusto e enorme aos nossos olhos. Tinha os olhos fundos focados em nós. As unhas compridas e amareladas, como garras. E ainda usava o chapéu de feltro.

Enfim conseguimos sair da inércia paralisante que nos prendia. Gritamos com toda a força de nossos jovens pulmões e saímos correndo em direção ao prédio, o mais rápido que conseguimos.

Subi as escadas da entrada do edifício sem olhar para trás. O porteiro abriu o portão assim que me viu. Entrei assustada e o fechei com força. Olhei novamente para a rua: estava deserta. Não havia nada e nem ninguém no ponto de ônibus. E minha amiga tinha desaparecido. Nunca mais a vi.

A decisão

O tempo estava se esgotando. A procrastinação não tinha mais espaço. Ela precisava se decidir. Qualquer um dos caminhos que escolhesse seria tempestuoso e acompanhado de renúncias importantes. Era um animal encurralo em um beco escuro e úmido, onde ninguém poderia ouvir seus pedidos de ajuda.

O café era seu melhor amigo. Forte, quente e amargo. Clareava a mente e diminuía a cefaleia que esmagava seus pensamentos. A chuva batia na vitrine da cafeteria enquanto a espuma da bebida quente girava no sentido horário. Quando ela estacionasse, a decisão já precisava estar tomada.

A dose de arsênico descansava no bolso do casaco. Paciente. Resiliente. Apenas aguardando o seu momento de entrar em cena.

O casamento fora arranjado. A ascensão social da família era mais urgente do que sua felicidade egoísta. Ela era um degrau a ser pisado para que todos avançassem para o próximo patamar da elite parisiense. Era apenas um peão a ser sacrificado antes do xeque – mate.

Só conheceu o marido no momento da cerimônia. Alto, robusto, com o nariz avantajado, mas não era de todo ruim. Talvez ela pudesse se acostumar. Se ambos tentassem a convivência poderia ser suportável. Esperança essa destruída já na noite de núpcias, quando a violência infligida no seu aflorar de mulher, a deixou sangrando por sete dias.

Sabia que deveria agradá-lo e se esforçava. O jantar era do seu gosto e no horário exato, todas as noites. A casa, sempre impecável. Mas se esquecesse de colocar as pantufas ao lado de sua poltrona de descanso, teria o nariz quebrado pela quarta vez.

Aos poucos foi se conformando com o seu novo status social: esposa de um marquês influente. Um objeto de luxo que deveria servir ao seu senhor e ser um depósito de esperma. E tudo piorou depois que ele passou a desejar um herdeiro. Ela não conseguia engravidar. E todo mês, uma surra destruía seu corpo e seu espírito quando a menstruação chegava.

Foi uma das enfermeiras do hospital que trouxe a solução. Era a terceira visita naquele mês ao pronto atendimento. Afinal, ela era uma mulher muito aérea, e vivia desequilibrando-se e machucando-se por distração. Mas, aquela senhora, com olhar experiente por detrás dos óculos, colocou o frasco em seu bolso enquanto terminava o curativo em seu braço direito.

– Tem quantidade suficiente para matar um homem grande. Misture na sua sopa, ou no seu vinho. Ele não vai perceber.

Desde então, aquele frasco virou parte de seu corpo. Não desgruda dele. Já teve várias oportunidades de despejá-lo, mas seu medo não permitiu. Ela poderia aguentar mais um pouco. Talvez houvesse outra saída. Se alguém desconfiasse, ela e toda sua família iriam para o cadafalso.

Mas agora, o tempo para decidir estava acabando. A barriga logo apareceria. E ela não podia nem pensar nas promessas hediondas que o marido fez se ela não lhe desse um menino. Isso precisava acabar hoje.

A espuma do café diminui a velocidade, até parar. Esse era o momento. Teria que decidir e não voltar atrás.

Com as mãos tremulas, retirou o frasco transparente do bolso. O apertava com tanta força, que quase quebrou o vidro. Despejou seu conteúdo no café e o misturou novamente, apressada, antes que o marido monstruoso voltasse para a mesa. Agora não haveria mais volta. Gastou sua única arma.

Segurou a xicara com as duas mãos e sentiu seu aroma de liberdade. Sorrindo saboreou sem pressa, aliviada. A decisão fora tomada.

O corredor

O corredor se estende a minha frente. A luz fria alcança apenas alguns metros, depois a escuridão é total. Um túnel que mergulha no negrume denso e pesado. Impossível mensurar a sua extensão. O chão é áspero e arranha os meus pés descalços. Um cheiro acinzentado de mofo e umidade, o gotejar ritmado que acompanha as batidas do meu coração.

Não posso continuar parada, sinto uma avassaladora urgência em sair daqui. Impossível voltar por onde vim. Minha única opção é adentrar nas trevas que me aguardam pacientemente. Posso sentir o seu pulsar e a respiração ofegante. Dou o primeiro passo.

Avanço com cautela, com os braços estendidos, como se eles pudessem enxergar por mim. Após pouco passos, a luz fria já está tão distante que parece a chama fraca de uma vela. Não vejo nada, apenas a massa escura. Apoio a mão direita na parede para me guiar. Viscosa e escorregadia, como a mucosa do fundo de uma garganta. Sinto repulsa e recolho o braço instintivamente. Porém, é o único ponto de referência que tenho para continuar andando em linha reta. Assim, tento não pensar no que estou tocando enquanto meus dedos deslizam e ficam ensebados. Um mínimo senso de direção.

O chão torna-se molhado. Uma fina camada pegajosa envolve meus pés. Meu estômago convulsiona e faço força para não vomitar quando um cheiro quente e pungente de podridão invade as minhas narinas.

O medo mudo estridente me invade quando uma mão pesada repousa em meu ombro. Corro sem pensar o mais rápido que consigo, a urgência queimando o peito. O corredor pulsa enquanto avanço para suas profundezas e me desnuda das camadas de vida. Sinto-me apagar enquanto minha essência é jogada para as trevas famintas.

Meus pulmões me obrigam a parar. Necessitam sorver-se de ar. Ofegante, escuto o choro de uma criança ao longe, além das paredes.

– Olá?! Onde você está?! – O choro aumenta o tom em resposta.

Caminho apressadamente. Há uma presença me observando. Muda, no meio das sombras. Apenas aguardando que o mundo se cale para que possa avançar. Corro novamente, escutando o arranhar de dedos nas paredes ao meu redor, me acompanhando.

O túnel infinito termina em um muro. Escuro, viscoso e pegajoso como as paredes. Não tenho saída. Meu coração bate com força contra meu peito e posso ouvi-lo pulsar dentro dos meus ouvidos. Sei que a presença está próxima.

A mão se aproxima dedilhando o chão e sobe pelas minhas pernas com seus dedos gelados e ásperos. Aperta minha coxa cravando as unhas na pele inocente. Fecho os olhos e grito de pavor. Com todas as forças que me restam. O som explode no ar balançando toda a estrutura do corredor, que percebo desmoronar ao meu redor.

Abro os olhos, estou na minha cama úmida. O cheiro de amônia atinge minhas narinas e meu coração ainda galopa. Aos poucos, ganho controle da minha consciência novamente. O tremor diminui enquanto reconheço as sombras do quarto.

Mas então, a vejo. A presença materializada em uma enorme massa escura espreita junto à porta. Caminha silenciosamente ao meu encontro enquanto sinto a umidade da cama se acentuar. O grito mudo sufoca minha garganta. Paraliso.

Senta-se ao meu lado. Cheira a suor enegrecido e amadeirado. Sinto novamente o dedilhar frio nas minhas pernas. A mão aperta e crava as unhas curtas na minha coxa. A claridade surda da janela reflete em seu pulso: ele sempre usa o relógio com que o presenteei no dia dos pais.

Fogos de ano novo

O réveillon de 2021 seria uma comemoração completamente atípica para as quatro amigas. Unidas desde a primeira infância, era muito raro passarem datas comemorativas separadas, principalmente depois que alcançaram a maioridade e, junto com ela, uma maior independência das festas familiares.

Porém, devido a todas as restrições que o ano de 2020 impôs, encontravam-se agora separadas por uma tela de computador. Cada uma em sua casa, com sua família, em seu isolamento. Nada de festas, bebedeiras, sete ondinhas ou beijos da sorte.

Combinaram a reunião virtual às vinte e três horas. Cada uma com seu espumante preparado para o “feliz ano novo”. Enquanto o momento não chegava, relembravam histórias engraçadas de comemorações passadas.

– Vocês lembram do réveillon de 2018? – Recordava-se Laura. – Quando a Bárbara ficou tão bêbada que dormiu toda molhada da água do mar, e depois ficou reclamando que seu colchão estava esfoliante de tanto sal!

– E o de 2019? – Era Alice quem falava. – Quando tivemos que tirar você, Laura, do meio de uma briga e acabamos todas sendo expulsas da balada, antes da meia-noite?

Todas riram com a lembrança.

– Esse será o pior réveillon de todos! – Lamentava-se Barbara, enquanto terminava mais uma taça de espumante.

– Com certeza não será pior do que o último, de 2020. – Daniela disse baixinho, sem a pretensão de que o microfone captasse.

Mas Alice não deixou passar:

– É verdade, Dani. Você nunca contou para gente o que, diabos, aconteceu nesse réveillon!

– Posso dizer que depois dele, não me importo nenhum pouco em estar passando esse em casa.

Foi o suficiente para que todas começassem a falar ao mesmo tempo, pedindo para a amiga contar o que poderia ser pior do que o tédio que estavam vivendo no momento.

– Tudo bem, tudo bem… Eu conto! Já passou mesmo, acho que talvez não precise me envergonhar tanto…

– Ter vergonha da gente? – Laura ria. – Somos suas melhores amigas!

– Tá bom! Tá bom! Vamos lá…

“Como vocês sabem, eu fui passar aquela virada de ano com o Matheus. Já fazia sete meses que estávamos namorando e achamos que seria a oportunidade perfeita para que conhecesse a sua família. Viajamos para casa da sua avó, em Florianópolis. Todos se reuniram lá: tios, primos, sobrinhos.

A casa da avó era enorme. Feita para receber a família toda. O térreo era ocupado por uma ampla sala de estar, com um enorme sofá de veludo bordô aconchegante, duas poltronas de couro preto, e uma imensa e brilhante arvore de Natal, estrategicamente posicionada para ser o centro das atenções. De lá podíamos ver o quintal, com duas mesas de jantar na área da varanda. No andar de cima, cinco suítes receberiam todos os vinte hóspedes.

Chegamos no início da tarde do dia trinta e um. Dividiríamos um quarto com a família da irmã de Matheus. Ela, o marido e seus dois filhos. A casa estava barulhenta e movimentada. Todos estavam muito entusiasmados com a reunião familiar. Pezinhos descalços corriam de um lado para o outro, tirando tudo do lugar e revirando a casa de ponta-cabeça.

 Ao todo havia sete crianças pipocando pela casa, mas elas pareciam se multiplicar e parecer uma verdadeira creche. E todas tinham uma fascinação pela arvore de Natal gigante. Queriam tocá-la, pegar seus enfeites, balançar as lampadinhas coloridas. E esse era o único momento em que a matriarca perdia a cabeça com os bisnetos. Aparentemente, ela compartilhava o mesmo fascínio.

Fui muito bem recebida por todos. Eu era a integrante mais recente da turma, mas me deixaram muito à vontade. Depois de um almoço caprichado, Matheus e eu saímos para dar uma volta pela cidade e comprar alguns itens de uma lista de detalhes que faltavam para a grande festa.

Enquanto meu namorado andava pelos corredores do supermercado concentrado em não esquecer nada da lista, me detive em uma sessão de festas e resolvi comprar um mimo para as crianças. Era um presente simples e barato, mas tinha certeza de que elas adorariam e elevaria o meu conceito de “a nova namorada” para “a namorada que as crianças amaram”.

A noite chegou rápido. A casa estava tão iluminada que ofuscaria os fogos de artificio no céu. Cada janela, e eram muitas, era contornada por uma fileira de luzinhas coloridas, assim como a porta de entrada e, claro, a gigante árvore de Natal. Essa, recebia um reforço especial com três tipos de lâmpadas diferentes, que piscavam incessantemente, deixando a sala parecida com uma pista de dança.

Todos estavam arrumados, perfumados, vestindo roupas novas e brancas. Nos espalhamos pelo quintal, enquanto as mesas eram postas. A quantidade de comida era impressionante! Peixe, porco assado, sopa de lentilha, arroz com amêndoas, torta de romã. O aroma aveludado era tentador e me deixou faminta.

Tudo estava perfeito! Tive uma afinidade muito grande com todos, principalmente com a irmã de Matheus, com quem dividíamos o quarto. Me senti acolhida e estava apaixonada por aquele rapaz, que não me largava nem por um minuto, com medo de que me sentisse deslocada no meio daquela movimentação toda.

Já era quase meia noite, quando todos se armaram com apitos, vuvuzelas, confetes. Estávamos esperando os últimos minutos de 2019 terminarem, quando distribui o meu presente para as crianças: eram aquelas velas “estrelinhas” de bolo de aniversário, que quando acessas soltam faíscas para todos os lados. Contei para elas que estariam segurando pequenas estrelinhas de fogos de artificio, como os que veríamos no céu.

As acendi assim que o coro da contagem regressiva começou. Os pequenos saíram correndo e sacudindo suas estrelinhas.

– Cinco, quatro, três, dois um… Feliz ano novo!!!

Fogos coloridos incendiaram o céu. Matheus me envolveu em um beijo apaixonado que fez minha nuca arrepiar. Todos riam, se abraçavam, brindavam.

Mas as comemorações foram interrompidas por um cheiro negro de queimado que invadiu o ar. Era um odor mais pungente do que o da pólvora dos fogos de artifício. Algo estava errado. De repente as crianças saíram de dentro da sala gritando e chorando. Foi quando vimos: a árvore de Natal gigante e colorida, estava em chamas!

No primeiro momento ficamos todos estáticos tentando entender a informação que nossos olhos nos passavam. Quando a árvore tombou em cima do sofá de veludo bordô, e esse também começou a queimar, foi que todos começaram a correr desesperadamente de um lado para outro.

Mães gritavam tentando proteger as crianças, alguns começaram a encher baldes e jogar água em cima do fogo. Mas tudo só acabou quando a mãe de Matheus apareceu com um extintor de incêndio, extinguindo a chamas e deixando toda a casa envolta em uma névoa branca e química.

Soluços, choros, silêncio. Contemplávamos o esqueleto carbonizado da árvore de Natal que jazia no meio da sala junto com o sofá despedaçado.

– Em nome de Deus! – Gritava a matriarca descontrolada. – Mas o que foi que aconteceu?!

– Foram as estrelinhas… – o menino mais velho soluçava.

– Que estrelinhas?! – Vovó rugia.

– As estrelinhas que a tia deu pra gente…

– Que tia?!

Foi quando todos os pequenos pestinhas apontaram juntos para mim, me delatando.”

Quando Daniela terminou o seu relato, as amigas permaneceram mudas, a encarando pela câmera. E, como um passe de mágica, todas caíram na gargalhada ao mesmo tempo. Ela não sabia se ria junto ou desligava o computador. Acabou optando pela primeira opção.

– Foi por isso que o Matheus terminou com você em janeiro?! – Alice perguntou quando conseguiu se controlar.

– Digamos que eu não fui aprovada pela família dele.

– Essa é a melhor história de réveillon de todos os tempos! – Laura comenta antes de ter outro ataque de riso.

– É… Mas ela ainda não acabou.

– Como assim, não acabou?

– Eu ainda tenho mais duas prestações do sofá novo para pagar. As da árvore terminei no mês passado.

Mais uma vez as quatro amigas caíram na gargalhada. Dessa vez ao som dos fogos de artifício que anunciavam a virada do ano.

– Feliz ano novo! – brindaram juntas.

– Que 2021 seja um ano melhor.

Um conto de Natal

Maria detestava essa época do ano: o Natal. Não porque tivesse algum trauma de infância, ou não pertencesse a uma família unida o suficiente para se reunir pelo menos na noite de vinte e quatro de dezembro. Não era nada pessoal contra o Natal em si. Mas detestava a falsidade das pessoas! Subitamente todos eram embebidos pelo tal “espírito natalino” e instantaneamente tudo o que fizeram de mal durante o ano era esquecido e perdoado. Ninguém sentia mais inveja, raiva, mesquinhez. De repente, todos se amavam e estavam se abraçando nas confraternizações de fim de ano. Trocavam presentinhos, abraços e juras de amor, como se não tivessem tentado prejudicar um ao outro durante todos os demais dias do ano. Para ela, era a época da hipocrisia.

Isso, sem mencionar o consumismo desenfreado que a mídia nos impulsionada a cometer. Eram presentes para os pais, irmãos, sobrinhos, chefe, amigos, professoras, gato, cachorro, papagaio. Não dava nem tempo de visualizar o décimo terceiro na conta bancária.

Sim, existiam campanhas solidárias beneficentes que se multiplicavam em dezembro. E isso era bom, sem dúvida! Mas e os outros dias do ano? Os necessitados continuavam com necessidades. E não era apenas de brinquedos que centenas de crianças carentes precisavam.

Estava pensando nessas questões que a assombravam todos os finais de ano enquanto desviava da multidão que transitava pelas ruas de comércio popular da cidade. Aparentemente metade da população teve a mesma ideia de aproveitar o horário do almoço para colocar as compras obrigatórias em dia.

Era um mar de corpos e sacolas se esbarrando sob o sol quente do meio-dia. O cheiro ocre amarelado de suor se misturava ao doce enjoativo de perfume barato. Já estava irritada por não conseguir entrar nas lojas lotadas e seu humor só piorava ao ser sacudida, esbarrada e pisoteada. Decidiu que era melhor voltar ao trabalho e deixar as compras para um outro momento.

Voltava apressada para o carro, quando ouviu o tilintar cintilante de um sino, acompanhado por: “Ho, ho, ho! Feliz Natal”. Observou o Papai Noel logo a sua frente, de costas e balançando o sininho dourado. Outra coisa que detestava no Natal: ver pessoas idosas se vestindo com essa roupa quente e pesada, em pleno verão tropical! Não fazia ideia como ele não estava passando mal. Ela mesma suava, sentia uma sede horrível e desmaiaria se não saísse logo dali. Mas aparentemente o bom velhinho não estava incomodado e caminhava despreocupadamente carregando um enorme saco vermelho. E ninguém parecia se impressionar com a sua presença. Passava desapercebido pela multidão.

Finalmente chegou ao carro. Deixou as sacolas no porta-malas e ao se dirigir para a porta do motorista, seu pé esbarrou em algo que rolou despertando o mesmo som cintilante: o sininho dourado do papai Noel. Maria resgatou-o e vasculhou o mar de gente com o olhar. Nem sinal da roupa vermelha quente e chamativa. Acabou guardando o objeto na bolsa e apressou-se a voltar para a empresa.

O trânsito estava lento, e ela com pressa. Finalmente virou à direita deixando para traz as ruas estreitas do centro e ganhando velocidade na avenida mais larga. De repente um carro branco corta a sua frente e se Maria não freasse imediatamente, teriam se chocado.

“Filho da puta!”, pensou enquanto descarregava a raiva na buzina. “Tomara que bata o carro para aprender a dirigir!”.

Em pouco segundos escutou a freada arrastada, buzinas e a colisão. Olhou pela janela e viu o carro branco prensado entre outros dois carros. A motorista desceu desesperada e gritando:

– Meu bebê! Meu bebê!!!

Maria prendeu a respiração enquanto a mulher era ajudada por outras pessoas a abrir a porta amassada e finalmente resgatar o bebê rechonchudo da cadeirinha. Aparentemente ileso. Sentiu uma pontada de culpa pelo pensamento que tivera. Que coisa horrível de se desejar a alguém!

Finalmente chegou ao prédio que trabalhava na hora exata. “Que tenha vaga. Por favor, que tenha vaga para estacionar!”. Ela sorriu ao ver a espaçosa vaga que a aguardava bem em frente à entrada. Estacionou rápido e sem dificuldades. Pôs-se a correr, com o sino balançando e tilintando dentro da bolsa, quando viu que todos entraram no elevador, prestes a partir.

“Não feche a porta. Me espere chegar!”. Aparentemente a porta do elevador enguiçou, disparando um alarme fino e ardido. Foi o tempo que ela precisava para alcançá-lo, e imediatamente após a sua chegada, a porta se fechou e a caixa de metal passou a subir normalmente pelos andares.

Finalmente adentrou em sua baia e ligou o computador. O suor escorria por sua testa e empapava os cabelos negros grudados na nuca. Ela estava faminta, não tinha almoçado, mas pelo menos chegara a tempo para os compromissos da tarde.

– Sete minutos, Maria. Está atrasada sete minutos! Terei que descontar da sua folha de pagamento.

A voz esganiçada a sobressaltou. Não precisava olhar para saber que se tratava da sua supervisora. A pessoa mais desprovida de empatia que já conhecera. “Megera!”. Maria desabafava mentalmente enquanto tentava se concentrar nas planilhas que tinha que entregar até o final do dia. “Espero que seja demitida para sentir como é bom não ter dinheiro suficiente!”.

Maria se concentrou em suas obrigações e não percebeu o tempo passar. Foi apenas quando a bexiga pesava muito que resolveu dar uma pausa e ir se aliviar. Chegando ao banheiro se surpreendeu ao encontrar a supervisora megera chorando. Ficou sem reação. Não sabia se falava alguma coisa ou fingia que não a viu.

– No Natal. Bem no Natal! – a supervisora falava com ela pelo espelho. – Me demitiram bem no Natal!

– Eu sinto muito. – Foi tudo o que Maria conseguiu dizer.

– Eu também. Trabalho nessa empresa há vinte anos! Eles me jogaram fora como lixo! – Ela fungava e assoava o nariz. – Como vou continuar pagando pelos remédios da minha filha agora?! Ela não pode ficar sem eles!

Maria sentiu um vazio enorme. Nunca se deu conta que por trás daquela megera pudesse existir um ser humano real. Alguém com sentimentos e necessidades. E com uma filha doente. Se sentiu péssima com a situação, e de alguma maneira absurda, responsável.

Voltou para sua baia sem o menor ânimo para continuar o que estava fazendo. Se sentia só, e indigna de qualquer consideração. Resolveu pegar o celular e mandar uma mensagem para sua melhor amiga para amenizar a reprovação que sentia de si mesma. Abriu a bolsa e sua mão esbarrou no sino. O tilintar a arrepiou. Recolheu o braço como se tivesse sido queimada, e fechou a bolsa novamente.

Inquieta, abandonou o computador e foi à copa dos funcionários achar algo para comer. Encontrou um saco de bolachas começado e programou a máquina automática para que cuspisse um café forte com gosto de terra. Quando estava retirando a xícara, sentiu um beliscão dolorido em sua nádega esquerda.

– Nossa, Maria! – a voz masculina aveludada soprava em seus ouvidos. – Se continuar usando essas calças justas poderei te promover à supervisora, agora que aquela magrela sem sal foi mandada embora.

Maria tencionou o corpo todo e fechou os olhos com força, tentando se controlar. Podia sentir o sorriso prepotente às suas costas e a respiração quente em sua nuca. “Como te odeio, seu desgraçado! Queria que morresse!”.

O chefe saiu da copa vagarosamente, sem desviar o olhar e mantendo o sorriso cafajeste no canto da boca. Ela segurou o ar, retesada contra a pia, até que ele sumisse da sua vista. Jogou o café fora sem provar. Foi quando se deu conta do que desejou e um súbito arrepio percorreu suas costas.

Saiu em disparada de volta para sua baia, alcançando a bolsa desesperadamente. Ouviu o tilintar cintilante antes mesmo de ver o sino lá dentro.

– Eu não quero que ele morra, ouviu?! Foi força de expressão, eu só estava com raiva. Por favor! Não faça isso. Eu não quero que ele morra!

Passou o resto da tarde vigiando o detestável chefe com olhar, sentindo um medo enorme de vê-lo infartar e cair duro bem na sua frente. Ou pior, dele achar que ela estava correspondendo às suas investidas asquerosas.

Finalmente o dia acabou e ela podia ir embora. Estava exausta! Só queria se refugiar na sua cama e fingir que o mundo não pulsava dentro da sua cabeça. Abria a porta do carro quando viu seu superior atravessando a rua. Um carro em alta velocidade apareceu de repente e investiu em sua direção pelo sinal vermelho. Maria não teve tempo de gritar. Ouviu a buzina estridente e fechou os olhos.

Demorou alguns segundos para voltar a abri-los. O fez com o coração disparado. Teve tempo de ver o homem chegando em segurança do outro lado da rua, balançando os braços e xingando o carro que já estava longe. Maria soltou o ar, que nem percebeu que estava segurando, e tratou de sair logo dali.

Dirigia distraída, pensando em todas as coisas estranhas que acontecera e tentando decidir se estava perdendo a sanidade ou não. Foi o quando o viu: andando sem pressa pela calçada, carregando o saco vermelho, e cantando “Ho, ho, ho!”. Sem balançar o sino agora. Aparentemente, nenhum passante repara ou se mobilizava com sua presença.

Maria parou numa vaga próxima, que mais uma vez, esperava por ela. Desceu do carro e pôs-se a correr com a bolsa à tira colo, despertando mais uma vez o tilintar cintilante do sino.

– Papai Noel!

O bom velhinho se deteve e virou em sua direção. Era exatamente como ela o imaginara quando criança: bochechas rosadas e rechonchudas, barba branca como algodão, olhos azuis gentis. Ficou sem graça quando percebeu que ele aguardava que dissesse alguma coisa enquanto ela apenas permanecia imóvel, admirada.

– Acho que isso é seu. – Tirou da bolsa e o entregou o sino dourado.

– Veja só! Achei que o tinha perdido! Muito obrigada, minha criança.

Maria sorriu de volta e sentiu-se corar.

– Agora me diga, criança. O que você vai querer ganhar de Natal?

Ela pensou por um breve momento, mas não teve dúvidas:

– Eu quero ser uma pessoa melhor.

O membro fantasma

Tive alta hospitalar trinta dias depois do acidente. Tentaram de todas as maneiras reimplantar o meu braço direto, mas foi impossível. Meu corpo não aceitou. Agora aquele pedaço, que um dia foi meu, já foi incinerado com outros restos humanos que não servem mais.

Ainda não assimilei completamente a minha nova condição. Meu coto jaz enfaixado ao lado do tronco. Mas posso jurar ainda sentir meu membro ausente enquanto estou de pé no saguão do hospital aguardando minha esposa trazer o carro.

– Eles o queimaram, não foi?

Uma mulher, por volta dos cinquenta anos, parada ao meu lado, aguardava uma reposta. Não entendi muito bem a pergunta, e me mantive em silêncio.

– Você não devia ter deixado. – Continuou. – Devia tê-lo enterrado. Como fariam com você inteiro, sabe? Para que realmente descansasse.

– Me desculpe, não sei do que a senhora está falando.

– Seu braço. – Ela apontava com o queixo. – Às vezes eles voltam, quando se sentem injustiçados…

– Vamos, querida. Não importune os outros pacientes. – Um homem de meia idade levava a mulher em direção a um carro estacionado. Apenas quando se afastaram reparei na pulseira roxa de identificação hospitalar que ela usava. Era a cor da ala da psiquiatria. Senti uma certa compaixão apesar do seu discurso sem nexo.

Naquela noite, como em todas as outras desde o acidente, não conseguia dormir. Ficava repassando aquele momento fatalista diversas e diversas vezes. Eu atravessando a avenida, o som rasgado do freio do carro, o impacto, a escuridão. O motorista parou para prestar socorro, chamou a ambulância e não saiu do meu lado. Era um moleque de vinte anos que discutia com a namorada e não estava prestando atenção.

Repensava em tudo o que eu poderia ter feito de diferente e que evitaria esse desfecho. Acabava em um sono agitado e nada reparador. Por isso, dependia cada vez mais dos comprimidos.

Quando já estava vagando para longe das margens da consciência, senti meu braço ausente formigar intensamente, como se ainda estivesse ali. Tinha a vivida sensação de que minha mão estava cerrada com tanta força, que as unhas cravavam e perfuravam a palma. Era doloroso e angustiante, mas não conseguia despertar. De repente, o rosto do motorista apareceu na minha visão. Sua expressão era desesperada e parecia sufocar. Olhos esbugalhados, língua exposta e arroxeada, lábios azuis. O formigamento no braço e a dor na palma da mão que não existia mais, se intensificaram a uma potência desesperadora.

Acordei gritando, suado, ofegante e esfregando meu braço fantasma de uma maneira frenética para tentar aliviar aquela sensação enlouquecedora. Minha esposa tentava me acalmar, mas foram necessários alguns minutos intermináveis para meu coração voltar a um ritmo aceitável e compatível com a vida.

Naquela tarde, todos os noticiários sensacionalistas aclamavam a mesma história: o jovem que foi encontrado morto em sua cama, com sinais de estrangulamento. Instantaneamente reconheci a pessoa na foto que circulava na televisão e nas redes sociais: era o motorista. Senti um arrepio na espinha e uma sensação de pânico. Será que o que vira durante o sono realmente aconteceu? Não fazia sentido nenhum. Será que eu poderia ter impedido de alguma maneira?

E a notícia se repetia em todos os canais. Durante dias não se falava em outra coisa. Contavam como Gustavo fora um jovem excepcional, exploravam o sofrimento da família e da namorada, e deixavam claro que a polícia não tinha nenhum suspeito. O meu acidente não foi mencionado.

Três dias depois, dois investigadores da polícia bateram na minha porta.

– Senhor Renato, gostaríamos de fazer algumas perguntas.

Investigavam o caso do assassinato de Gustavo e não me surpreendi por estarem na minha sala. Afinal, eu fora uma vítima da vítima. Teria motivos para me vingar.

– Onde estava na noite de trinta de abril? – o mais velho perguntou.

– Bem aqui, na minha casa. Foi o dia em que cheguei do hospital.

– Alguém pode confirmar isso?

– Minha esposa.

Depois de uma série de perguntas rotineiras, que eu imaginava que existiam para deixar o interrogado mais à vontade e propicio a falar, foram direto ao assunto:

– Senhor Renato, o motivo da nossa visita é muito simples: você teria um motivo para se vingar da vítima, e suas digitais foram encontradas nas marcas de estrangulamento. Suas digitais da mão direita…

– O quê?! Isso não faz o menor sentido! E como podem ver, eu não tenho mais a mão direita.

– Sim, podemos ver isso. Mas peço para que não saia da cidade até segunda ordem.

– Não irei a lugar nenhum.

Os dias se passaram e nenhum suspeito foi preso. Os investigadores não seguiram com as acusações ao meu respeito já que eram completamente infundadas, beirando a danos morais frente aos fatos. E aos poucos, o caso caiu no esquecimento.

Um mês depois, em uma noite chuvosa, enquanto afundava lentamente no sono necessário ouvindo o som dos pingos pesados na janela, fui surpreendido novamente pelo formigamento feroz de meu braço inexistente. Era tão intenso que chegava a queimar! As unhas cravavam a palma da mão e eu sentia nitidamente a perfuração ardida que faziam. Tentei gritar e me levantar, mas era tarde demais: já estava preso em algum outro limite entre a consciência e o inconsciente.

Estava apavorado e desejava sair correndo o mais rápido possível, mas não tinha controle sobre nada. A escuridão era silenciosa, solitária e opressiva. Um rosto surgiu na minha frente: uma jovem com longos e brilhantes cabelos negros dormia pacificamente. Era a namorada. Ela despertava subitamente tentando gritar, mas não conseguia. Nenhum som saia de sua garganta que era progressivamente esmagada. Seus olhos arregalados rapidamente perderam o brilho, enquanto o rosto todo inchava e adquiria aquela coloração azulada.

Finalmente consegui despertar. Gritava na cama em frenesi, enquanto tentava arrancar o membro que já não estava lá. Esfregava, socava e arranhava o nada, atingindo apenas o meu tronco.

– É o braço! É o braço! É o braço!

– Meu Deus, Renato! Se acalme. Você está me assustando! – minha esposa me sacudia tentando me tirar do transe.

– É o braço, Márcia. Ele está se vingando!

– Que braço?!

– O meu!

– Pare com isso! Do que está falando?! Está parecendo um louco!

Foram preciso muitos minutos para que me acalmasse. E dois ou três comprimidos. No dia seguinte, lá estavam as manchetes novamente: garota estrangulada na própria cama enquanto dormia. E, era a namorada da vítima anterior.

A polícia bateu à minha porta novamente. Fez as mesmas perguntas e foi obrigada a tirar as mesmas conclusões. Eu sabia que jamais pegariam o assassino. Ele já estava morto. Claro que não disse nada. Não queria ser internado na ala psiquiátrica, junto com a mulher da pulseira roxa.

A partir de então, fiquei com medo de dormir. De presenciar o pedaço morto e assassino de mim matando mais alguém, e não conseguir fazer nada para impedir. Porém, uma conclusão me atingiu trazendo um certo alívio. Se ele estava vingando a sua morte, seu trabalho nefasto já havia terminado. Ele matou o motorista que nos atropelou e a namorada que o distraiu. Talvez, tudo tivesse finalmente acabado.

Mas, eu não conseguia me tranquilizar. Algo importante estava me escapando. Algo inacabado. Passei e repassei mentalmente a cena do acidente inúmeras vezes: eu atravessando a avenida, o carro batendo. Eu atravessando a avenida, o carro batendo. Eu atravessando a avenida… Foi como um estalo na minha mente!

Eu atravessava a avenida mexendo no celular. Não reparei que o sinal vermelho para os pedestres estava piscando. Deveria ter visto e parado, mas estava distraído. Eu também fui responsável pelo acidente. Eu também o havia matado!

Senti um arrepio percorrer todo o meu corpo. Marcia respirava pesadamente de costas para mim. E o quarto parecia expandir e contrair no ritmo de sua respiração. Senti o membro fantasma começar a formigar levemente. Ele estava por perto. Mas eu estava completamente desperto e alerta.

O formigamento aumentou e já sentia as unhas cravadas novamente. Me levantei da cama massageando inconscientemente a região. Fui para a sala do apartamento enquanto a sensação aumentava. O silêncio era sepulcral e quase palpável. Foi rompido por um som nauseante de arranhar.  Parecia vir do teto e estava cada vez mais próximo. O formigamento ficava cada vez mais intenso.

Olhei para cima a tempo de ver uma massa branca se esgueirando na escuridão em uma velocidade impressionante, difícil de acompanhar. Antes que pudesse gritar, ele estava em cima de mim. Podia sentir os dedos gelados, que antes eram meus, em volta do meu pescoço. Apertavam com violência minha garganta, impedindo a passagem do ar. Por reflexo, tentava de livrar dele com a mão que me restava, mas sua força, não era humana. Pude ver os ossos reluzindo e pedaços de músculos e tendões balançando na outra extremidade da coisa que tentava me matar.

Estava perdendo a consciência, mas não partiria desse mundo sozinho. Assim, fui caminhando para sacada enquanto ainda me restava alguma de lucidez para tentar lutar. Segurava-o com todas as forças que me restavam e me deixei cair do peitoril.

Enquanto caía no nada tentava gritar mentalmente: nascemos juntos, morreremos juntos então, seu filho da puta! Mas antes do impacto final, senti um súbito alívio da pressão na garganta. E soube que o membro fantasma conseguira a sua vingança. E não partiria comigo.

Deu tudo certo

Luciana foi uma das minhas primeiras pacientes após o término da residência médica. Acompanho seu caso há dois anos. Uma luta silenciosa contra uma doença horrível. A qual vem perdendo batalha após batalha.

Desde o diagnóstico o quadro mostrou-se complicado. A leucemia tinha um comportamento agressivo, resistente a todas as quimioterapias que estavam disponíveis. Fui obrigada a deixar muito claro o prognóstico ruim que enfrentávamos. As chances eram mínimas. Mas Luciana nunca desanimou: sempre encarou seus obstáculos como algo tão pequeno e passageiro, deixando-me na dúvida se realmente entendia o que estava acontecendo.

Talvez fosse a minha inexperiência, ou o fato de termos idades semelhantes, ou mesmo a proximidade que surgiu entre nós nesses dois anos de convivência intensa, mas não conseguia enxergar nela uma paciente com o distanciamento emocional necessário na minha profissão. Trocamos experiências, momentos difíceis, alegrias inusitadas. Às vezes as amizades mais sinceras surgem nas situações menos prováveis.

Agora estou me preparando para comunicar o resultado dos exames após seu transplante de medula óssea. Nosso último recurso. A última arma secreta contra esse inimigo invisível. Encaro a porta do quarto 515 sem coragem de girar a maçaneta. Teria eu o direito de acabar com todas as esperanças? De selar um destino? De enterrar alguém que ainda respirava?

Luciana parece tão pequena afundada em seu leito asséptico. Está muito magra, sem os cabelos, com olhos fundos e sem brilho. Respira com dificuldade, como se cada movimento de seu tórax lhe custasse todas as poucas forças que ainda tem. Mesmo assim, sorri ao me ver. Um sorriso pleno, vívido, que não pertence àquele corpo que se esvai.

Estou ansiosa. Nervosa como na primeira vez em que tive que dar uma má notícia para alguém na faculdade.

– Bom dia, Luciana. Como está se sentindo?

– Como ontem, doutora. Talvez um pouco melhor.

Sorrio carinhosamente, sabendo que ela não está falando a verdade.

– Os resultados dos exames saíram…

– Eles vieram, doutora. – Ela me interrompe.

– Quem?

– Meus irmãos. Eles vieram me ver. Juntos. Não os via juntos há 3 anos.

Acho que os resultados podem esperar. Me sento ao lado do seu leito e deixo que fale.

– Eles estavam brigados todo esse tempo, por um motivo idiota. Mas hoje eles vieram me ver juntos.

– E isso é bom, não é?

– É ótimo! O meu irmão também está doente. – Ela fala pausadamente, ofegante como quem corre uma ladeira acima. – Precisa de um rim novo.

– Eu sinto muito.

– Mas agora eles se abraçaram. Na minha frente. Minha irmã disse que vai doar.

– Isso é fantástico, Luciana!

– É sim… – Uma tosse angustiante interrompe a conversa.

Trocamos sorrisos cúmplices quando o acesso acaba. Dói-me ver aquele rosto envelhecido, aquele corpo consumido. Penso em toda a vida que ela deveria ter pela frente, mas fora arrancada sem piedade. A luta nunca fora justa. Já estava fadada desde o início.

Me sinto impotente, incapaz. Uma profissional que não conseguiu ajudar. Onde foi que falhei? Fiz a quimioterapia correta? Deveria ter optado por outra? Se tivesse feito o procedimento antes? Não ajudei alguém que confiou a vida em mim. Deu tudo errado.

– Luciana, os exames…

Ela segura minha mão e me olha com tranquilidade.

– Eu já sei, doutora. Não se preocupe. O importante é que deu tudo certo.

– Deu tudo certo?

– Sim. Eles se abraçaram. Ela vai doar. Deu tudo certo.

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