Estávamos eu e minha amiga voltando da aula de ballet. As duas usavam o uniforme composto por collant preto e meia calça rosa por debaixo dos shorts e camisetas, que disfarçavam as nossas curvas de futuras mulheres que começavam a despontar. Tínhamos o cabelo preso em um coque no alto da cabeça. Parecíamos duas irmãs. Mas não lembro seu rosto, ou seu nome. Não lembro quem era ela.
Mas o mais importante é que estávamos juntas. Sabíamos que não deveríamos nunca andar sozinhas pelas ruas. Era perigoso. Mesmo se fosse no meio da tarde, com o sol castigando nossas nucas, e por um caminho tão familiar, que nos levava de volta para casa três vezes por semana, após nossas amadas práticas de dança.
Caminhávamos despretensiosamente, conversando com empolgação. Às vezes treinávamos uma pirueta ou algum salto diferente entre os desníveis da calçada. Apesar das risadas, estávamos sempre atentas. Olhando para trás, nos certificando que nenhum estranho ameaçador nos seguia.
Já tínhamos os nossos pontos estratégicos caso precisássemos nos abrigar: a padaria da esquina, a floricultura dois quarteirões a frente e a lojinha de aviamentos logo depois. Passados esses estabelecimentos, já estaríamos muito próximas de casa.
Dobramos a direita e iniciamos a pior parte do caminho: a subida. Depois de uma hora e meia nas pontas dos pés, saltando e rodopiando, nossas pernas sempre reclamavam nessa parte do trajeto. Então, como de costume, diminuímos o passo.
Conversávamos alegremente, mas eu não lembro sobre o quê. Estava faminta e com sede. O dia estava quente, deixando meu pescoço suado e minha garganta seca. Passamos pela porta da padaria, e tudo o que mais desejava era entrar lá e comprar um enorme suco de melancia. Mas não tínhamos dinheiro. Nunca andávamos com dinheiro quando estávamos sozinhas na rua.
Arrastando as pernas fomos passando pelo quarteirão seguinte. A rua do bairro estava vazia. Ninguém se dispunha a passear por lá debaixo daquele sol escaldante de verão. No asfalto à frente, era possível visualizar a miragem de poças d’água reluzindo, mas que nunca existiam de fato quando nos aproximávamos.
A subida agora estava na metade, e já não tagarelávamos com tanta empolgação. Poupávamos nossas energias para conseguirmos chegar em casa. Em tardes como aquela, tinha a sensação de que estava atravessando um deserdo hostil, e que os cinco quarteirões que tínhamos que vencer, eram na verdade cinco quilômetros.
Passamos pela floricultura, e uma brisa gelada e convidativa nos recebeu. Era o ar-condicionado que mantinha as plantas vivas naquele calor. Mais alguns metros, e a senhorinha dona da loja de aviamentos nos acenou lá de dentro. Nunca tínhamos conversado, mas nos considerávamos conhecidas. Era sempre o mesmo aceno, três tardes por semana.
Finalmente estávamos chegando ao topo da rua, e ao fim daquele martírio. Tudo continuava deserto e silencioso. Até que vimos um movimento no ponto de ônibus logo a frente, que era o marco do final da subida. Uma criatura estava sentada lá. Era um cão. Mas não era um vira-lata comum. Tinha o pelo curto, alaranjado. Focinho longo, orelhas pontudas e alertas. Estava sentado no banco do ponto, com as patas traseiras cruzadas uma sobre a outra, como uma mulher elegante. Usava um chapéu de feltro cinza escuro e fumava um cigarro que segurava com sua pata direita.
Podíamos sentir o cheiro do tabaco ao nos aproximar. Diminuímos o passo até parar hipnotizadas por aquela visão inusitada. O cão nos encarou de volta por um momento eterno. De repente a criatura começou a se expandir, crescer e se transformar em outra coisa.
– Não falem com ninguém! Não falem com ninguém! Não falem com ninguém!
Enquanto recitava o mantra sem parar, o cão se transformava em um homem velho, robusto e enorme aos nossos olhos. Tinha os olhos fundos focados em nós. As unhas compridas e amareladas, como garras. E ainda usava o chapéu de feltro.
Enfim conseguimos sair da inércia paralisante que nos prendia. Gritamos com toda a força de nossos jovens pulmões e saímos correndo em direção ao prédio, o mais rápido que conseguimos.
Subi as escadas da entrada do edifício sem olhar para trás. O porteiro abriu o portão assim que me viu. Entrei assustada e o fechei com força. Olhei novamente para a rua: estava deserta. Não havia nada e nem ninguém no ponto de ônibus. E minha amiga tinha desaparecido. Nunca mais a vi.