O membro fantasma

Tive alta hospitalar trinta dias depois do acidente. Tentaram de todas as maneiras reimplantar o meu braço direto, mas foi impossível. Meu corpo não aceitou. Agora aquele pedaço, que um dia foi meu, já foi incinerado com outros restos humanos que não servem mais.

Ainda não assimilei completamente a minha nova condição. Meu coto jaz enfaixado ao lado do tronco. Mas posso jurar ainda sentir meu membro ausente enquanto estou de pé no saguão do hospital aguardando minha esposa trazer o carro.

– Eles o queimaram, não foi?

Uma mulher, por volta dos cinquenta anos, parada ao meu lado, aguardava uma reposta. Não entendi muito bem a pergunta, e me mantive em silêncio.

– Você não devia ter deixado. – Continuou. – Devia tê-lo enterrado. Como fariam com você inteiro, sabe? Para que realmente descansasse.

– Me desculpe, não sei do que a senhora está falando.

– Seu braço. – Ela apontava com o queixo. – Às vezes eles voltam, quando se sentem injustiçados…

– Vamos, querida. Não importune os outros pacientes. – Um homem de meia idade levava a mulher em direção a um carro estacionado. Apenas quando se afastaram reparei na pulseira roxa de identificação hospitalar que ela usava. Era a cor da ala da psiquiatria. Senti uma certa compaixão apesar do seu discurso sem nexo.

Naquela noite, como em todas as outras desde o acidente, não conseguia dormir. Ficava repassando aquele momento fatalista diversas e diversas vezes. Eu atravessando a avenida, o som rasgado do freio do carro, o impacto, a escuridão. O motorista parou para prestar socorro, chamou a ambulância e não saiu do meu lado. Era um moleque de vinte anos que discutia com a namorada e não estava prestando atenção.

Repensava em tudo o que eu poderia ter feito de diferente e que evitaria esse desfecho. Acabava em um sono agitado e nada reparador. Por isso, dependia cada vez mais dos comprimidos.

Quando já estava vagando para longe das margens da consciência, senti meu braço ausente formigar intensamente, como se ainda estivesse ali. Tinha a vivida sensação de que minha mão estava cerrada com tanta força, que as unhas cravavam e perfuravam a palma. Era doloroso e angustiante, mas não conseguia despertar. De repente, o rosto do motorista apareceu na minha visão. Sua expressão era desesperada e parecia sufocar. Olhos esbugalhados, língua exposta e arroxeada, lábios azuis. O formigamento no braço e a dor na palma da mão que não existia mais, se intensificaram a uma potência desesperadora.

Acordei gritando, suado, ofegante e esfregando meu braço fantasma de uma maneira frenética para tentar aliviar aquela sensação enlouquecedora. Minha esposa tentava me acalmar, mas foram necessários alguns minutos intermináveis para meu coração voltar a um ritmo aceitável e compatível com a vida.

Naquela tarde, todos os noticiários sensacionalistas aclamavam a mesma história: o jovem que foi encontrado morto em sua cama, com sinais de estrangulamento. Instantaneamente reconheci a pessoa na foto que circulava na televisão e nas redes sociais: era o motorista. Senti um arrepio na espinha e uma sensação de pânico. Será que o que vira durante o sono realmente aconteceu? Não fazia sentido nenhum. Será que eu poderia ter impedido de alguma maneira?

E a notícia se repetia em todos os canais. Durante dias não se falava em outra coisa. Contavam como Gustavo fora um jovem excepcional, exploravam o sofrimento da família e da namorada, e deixavam claro que a polícia não tinha nenhum suspeito. O meu acidente não foi mencionado.

Três dias depois, dois investigadores da polícia bateram na minha porta.

– Senhor Renato, gostaríamos de fazer algumas perguntas.

Investigavam o caso do assassinato de Gustavo e não me surpreendi por estarem na minha sala. Afinal, eu fora uma vítima da vítima. Teria motivos para me vingar.

– Onde estava na noite de trinta de abril? – o mais velho perguntou.

– Bem aqui, na minha casa. Foi o dia em que cheguei do hospital.

– Alguém pode confirmar isso?

– Minha esposa.

Depois de uma série de perguntas rotineiras, que eu imaginava que existiam para deixar o interrogado mais à vontade e propicio a falar, foram direto ao assunto:

– Senhor Renato, o motivo da nossa visita é muito simples: você teria um motivo para se vingar da vítima, e suas digitais foram encontradas nas marcas de estrangulamento. Suas digitais da mão direita…

– O quê?! Isso não faz o menor sentido! E como podem ver, eu não tenho mais a mão direita.

– Sim, podemos ver isso. Mas peço para que não saia da cidade até segunda ordem.

– Não irei a lugar nenhum.

Os dias se passaram e nenhum suspeito foi preso. Os investigadores não seguiram com as acusações ao meu respeito já que eram completamente infundadas, beirando a danos morais frente aos fatos. E aos poucos, o caso caiu no esquecimento.

Um mês depois, em uma noite chuvosa, enquanto afundava lentamente no sono necessário ouvindo o som dos pingos pesados na janela, fui surpreendido novamente pelo formigamento feroz de meu braço inexistente. Era tão intenso que chegava a queimar! As unhas cravavam a palma da mão e eu sentia nitidamente a perfuração ardida que faziam. Tentei gritar e me levantar, mas era tarde demais: já estava preso em algum outro limite entre a consciência e o inconsciente.

Estava apavorado e desejava sair correndo o mais rápido possível, mas não tinha controle sobre nada. A escuridão era silenciosa, solitária e opressiva. Um rosto surgiu na minha frente: uma jovem com longos e brilhantes cabelos negros dormia pacificamente. Era a namorada. Ela despertava subitamente tentando gritar, mas não conseguia. Nenhum som saia de sua garganta que era progressivamente esmagada. Seus olhos arregalados rapidamente perderam o brilho, enquanto o rosto todo inchava e adquiria aquela coloração azulada.

Finalmente consegui despertar. Gritava na cama em frenesi, enquanto tentava arrancar o membro que já não estava lá. Esfregava, socava e arranhava o nada, atingindo apenas o meu tronco.

– É o braço! É o braço! É o braço!

– Meu Deus, Renato! Se acalme. Você está me assustando! – minha esposa me sacudia tentando me tirar do transe.

– É o braço, Márcia. Ele está se vingando!

– Que braço?!

– O meu!

– Pare com isso! Do que está falando?! Está parecendo um louco!

Foram preciso muitos minutos para que me acalmasse. E dois ou três comprimidos. No dia seguinte, lá estavam as manchetes novamente: garota estrangulada na própria cama enquanto dormia. E, era a namorada da vítima anterior.

A polícia bateu à minha porta novamente. Fez as mesmas perguntas e foi obrigada a tirar as mesmas conclusões. Eu sabia que jamais pegariam o assassino. Ele já estava morto. Claro que não disse nada. Não queria ser internado na ala psiquiátrica, junto com a mulher da pulseira roxa.

A partir de então, fiquei com medo de dormir. De presenciar o pedaço morto e assassino de mim matando mais alguém, e não conseguir fazer nada para impedir. Porém, uma conclusão me atingiu trazendo um certo alívio. Se ele estava vingando a sua morte, seu trabalho nefasto já havia terminado. Ele matou o motorista que nos atropelou e a namorada que o distraiu. Talvez, tudo tivesse finalmente acabado.

Mas, eu não conseguia me tranquilizar. Algo importante estava me escapando. Algo inacabado. Passei e repassei mentalmente a cena do acidente inúmeras vezes: eu atravessando a avenida, o carro batendo. Eu atravessando a avenida, o carro batendo. Eu atravessando a avenida… Foi como um estalo na minha mente!

Eu atravessava a avenida mexendo no celular. Não reparei que o sinal vermelho para os pedestres estava piscando. Deveria ter visto e parado, mas estava distraído. Eu também fui responsável pelo acidente. Eu também o havia matado!

Senti um arrepio percorrer todo o meu corpo. Marcia respirava pesadamente de costas para mim. E o quarto parecia expandir e contrair no ritmo de sua respiração. Senti o membro fantasma começar a formigar levemente. Ele estava por perto. Mas eu estava completamente desperto e alerta.

O formigamento aumentou e já sentia as unhas cravadas novamente. Me levantei da cama massageando inconscientemente a região. Fui para a sala do apartamento enquanto a sensação aumentava. O silêncio era sepulcral e quase palpável. Foi rompido por um som nauseante de arranhar.  Parecia vir do teto e estava cada vez mais próximo. O formigamento ficava cada vez mais intenso.

Olhei para cima a tempo de ver uma massa branca se esgueirando na escuridão em uma velocidade impressionante, difícil de acompanhar. Antes que pudesse gritar, ele estava em cima de mim. Podia sentir os dedos gelados, que antes eram meus, em volta do meu pescoço. Apertavam com violência minha garganta, impedindo a passagem do ar. Por reflexo, tentava de livrar dele com a mão que me restava, mas sua força, não era humana. Pude ver os ossos reluzindo e pedaços de músculos e tendões balançando na outra extremidade da coisa que tentava me matar.

Estava perdendo a consciência, mas não partiria desse mundo sozinho. Assim, fui caminhando para sacada enquanto ainda me restava alguma de lucidez para tentar lutar. Segurava-o com todas as forças que me restavam e me deixei cair do peitoril.

Enquanto caía no nada tentava gritar mentalmente: nascemos juntos, morreremos juntos então, seu filho da puta! Mas antes do impacto final, senti um súbito alívio da pressão na garganta. E soube que o membro fantasma conseguira a sua vingança. E não partiria comigo.

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